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William Somerset Maugham, (1874 — 1965), romancista e dramaturgo britânico, um dos mais prolíficos da história: 55 obras de ficção, mais 24 peças de teatro, 23 criações adaptadas para o cinema. Quando explodiu a 1º Guerra era velho demais para alistar-se, mas incorporou-se como voluntário no chamado Literary Ambulance Drivers (Condutores de Ambulância Literários), um grupo de 23 conhecidos escritores, entre os quais estavam Ernest Hemingway, John dos Passos e E. E. Cummings. Trabalhou como espião para o Serviço Secreto britânico. Aos 40 anos era já consagrado mundialmente, e foi um dos primeiros e poucos escritores a enriquecer à custa de literatura, mas jamais obteve o respeito dos críticos e escritores, que o critivavam por carência de lirismo, reduzido vocabulário e uso pobre da metáfora.



LITERATURA | RESENHA
barba ensopada de sangue
Autobiografia, ficção, espiritualidade, crítica social, estudos de personagens, tudo se mescla na obra de Maugham, prodígio de público e fracasso de crítica, que aos 64 anos disse: “Realidade e ficção estão tão mescladas em minha obra que agora, olhando para ela, dificilmente posso distinguir uma de outraâ€.


5 agosto 2016 | comente


Tive dificuldade para ler esse livro. É misterioso, fora do comum, demora a mostrar a que veio. No começo, como a obra contrariava todas as minhas expectativas, o estranhamento a tornava irritante. Foi preciso avançar até o meio para perceber para onde Somerset Maugham pretende chegar. Depois que entendi o que o autor estava fazendo, e passei a confiar nele, na sua capacidade de chegar aonde pretendia me levar, a leitura se tornou não apenas prazerosa, mas empolgante.

Agora que terminei, percebo de onde vinha o estranhamento e a irritação: é um livro inovador, mas finge que não. Como ele segue uma estrutura aparentemente trivial, e o autor se apresenta e começa sua narração em tom coloquial, modesto, o leitor se prepara para uma experiência banal de leitura de best-seller. Quando chega ao nono ou décimo diálogo seguido, o leitor está cansado e perguntando quando começará a ação. Aí é que está: não existe ação. Ou não parece existir, pelo menos. É um livro todo feito de diálogos. Os personagens sentam neste ou naquele bar, café, restaurante, hotel ou mansão, e conversam. O tempo todo. Parece uma peça de teatro, ou um filme sueco. Mudam as placas de cenário e os móveis, entra um personagem e sai outro, e eles conversam. E conversam. O narrador não mostra nada. Os personagens contam tudo o que aconteceu. Aconteceu muita coisa, mas um leitor menos atento nem percebe, porque no primeiro plano estão sempre os mesmos seis ou sete personagens, sentados e conversando, em dupla, trio ou em grupo. Parece que o livro é só isso, uma interminável conversa. Mas não é, e aí reside a esperteza do autor. Atrás da cena onde os personagens conversam há uma outra cena oculta, se passando na memória e na narrativa dos personagens, uma narrativa incrustada, subliminar. Maugham narra os diálogos dos personagens, os personagens narram a história. Uma narrativa dentro da outra. O autor dá a palavra aos personagens para eles contarem em primeira pessoa cada um o seu fragmento da história. Assim, há mais perto do leitor um narrador-protagonista, que é uma espécie de mestre de cerimônias de um enorme talk-show que dura vinte anos. E ele traz para o palco, e entrevista, seis ou sete convidados, que se tornam cada um o narrador onisciente da sua história pessoal. Ao leitor — com uma ajuda discreta, mas eficaz, do autor — cabe juntar as peças, colocá-las em ordem cronológica e buscar o sentido do conjunto.

Mais engenhoso ainda, o autor camufla o fato de que atrás e por dentro da história aparente que os personagens narram, da história dos fatos externos das vidas deles, a ação mais intensa e interessante está acontecendo internamente neles, na alma dos personagens. É menos a crônica das ações dos personagens que interessa, e mais a história de como eles mudam, se transformam, evoluem ou regridem. Os fatos contados são, a bem dizer, singelos. Não vou resumir a história, porque ela já é tão curta que não justificaria o tamanho do livro, daria um conto se tanto. O que enche o livro, lhe dá substância e justificativa, é a história íntima dos personagens-narradores, a história que se passou com os sentimentos e visões de mundo deles ao longo das décadas. O modo como os personagens-narradores se postam em cena, o jeito como relatam e interagem, mostra como a voz deles, por assim dizer, vai mudando ao correr dos anos, e convida o leitor a avaliar essas pessoas. Por fora, no mundo dos fatos, uma pasmaceira, uma meia dúzia de acontecimentos banais; por dentro, no cenário psicológico de cada personagem, uma saga estava acontecendo.

Enquanto prestava atenção aos diálogos sem ver a cena fática atrás deles, achei o livro enfadonho. Quando comecei a prestar atenção aos fatos que os personagens relatavam, achei-o cativante. Quando comecei a perceber que o modo como os personagens relatavam os fatos mostrava a história do caráter e dos sentimentos de cada um, o livro se tornou ótimo.

Sumário



retratos

Maugham é - neste livro, pelo menos; não conheço os outros dele - principalmente um retratista. É evidente, indisfarçado, que é isso que ele gosta de fazer: enxergar a fundo uma pessoa e retratar uma personalidade em poucas pinceladas significativas. É uma das qualidades que mais admiro num autor, e tenho predileção pelas obras que enfatizam isso, daí porque foi fácil gostar de Maugham. Ele é realmente habilidoso nessa arte. Obviamente não tenho como saber se os retratos que ele pinta são fieis aos modelos, mas é claro que isso não interessa: para fazer dele um bom escritor basta que os retratos sejam consistentes e os personagens pareçam de verdade. E os de Maugham parecem. Ele consegue criar, em quatro ou cinco linhas, uma pessoa de carne e osso que o leitor vê à sua frente, acredita que existe de verdade, ou poderia existir, e, mais importante, alguém de quem o leitor tem a impressão de conhecer intimamente.

Daí que o livro tem muitos desses retratos. Alguns são, por assim dizer, em 3 por 4, micro-retratos que o autor, figurativamente falando, rabisca nos guardanapos enquanto conversa com um personagem num café. São provavelmente os mais deliciosos. Acho, no meu modesto ponto de vista de apreciador desse gênero de arte, que o livro vale a pena só por esses retratinhos. Neles Maugham revela a combinação de uma imaginação prodigiosa com a habilidade de pinçar as imagens mais expressivas de um caráter. Ressalto, por exemplo, os retratos de Joseph, mordomo de Elliott, ou das fazendeiras Ellie e Frau Becker, ou do polonês Kosti, ou do bispo falastrão, da sevilhana anônima, das duas meninas filhas de Isabel. São pequenas pérolas iluminando o livro.

Há outros figurantes que Maugham ilumina mais extensamente, em passagens que não incluí na categoria dos retratos, porque são mais propriamente contos, ou micro-contos, embutidos ao correr da narrativa principal. Também esse aspecto da obra me parece suficiente para torná-la antológica. A história de Suzanne Rouvier, por exemplo, bem vale um livro. É uma personagem tão interessante, e retratada com tanta vivacidade, tanta clareza, que fiquei pensando se o livro todo não seria uma justificativa para narrar essa historinha. Suzanne merecia um livro só para ela, mas as seis ou sete páginas que recebeu têm peso e força de um livro inteiro. É um conto magnífico, embrenhado e firmemente amarrado na história principal. E há vários outros assim. A bem dizer, cada um dos personagens principais, além de participar da trama central, têm episódios que, tomados separadamente, reúnem cada um todos os requisitos de um ótimo conto: têm começo, meio e fim, completa definição de personagens, conflito e resolução, e final impactante. Assim, por exemplo, a história de Larry com a sevilhana, a de Larry com Kosti, a breve aparição de Paul Barton, a jornada de Henry Maturin, a curta e triste aparição do Patsy, o micro-romance de Larry e Suzanne, a lastimável Sophie. A trama central, resumida ao esqueleto dos puros fatos, parece magra e singela, mas o que Maugham fez foi tecer uma vasta tapeçaria onde essa trama principal se entremeia com dezenas de histórias paralelas, onde os personagens entram e saem, se encontram e desencontram e reencontram, e trazem para a cena coadjuvantes tão interessantes quanto eles. Não sei se seria justo dizer que ele traçou um painel de uma época, mas é inegável que o recorte que fez é muito rico, muito variado e cativante, e pleno de vigor e interesse humano.

Anotei, para citar, só dois dos muitos retratos ou micro-contos incrustados no livro, e exatamente porque, embora sejam duas jóias, estão no capítulo que Maugham sugere ao leitor não ler. Suponho que alguns aceitarão o conselho e não lerão, e com isso perderão muito. Perderão, por exemplo, isto:


Minha curiosidade se aguçara com a presença de um homem pequeno, discretamente vestido, ali sentado havia mais de uma hora, a ler o jornal com um copo de cerveja à frente. Tinha uma barba preta, bem aparada, e usava pincenê. Finalmente chegou uma mulher e sentou-se à sua mesa. Ele cumprimentou-a com a cabeça, sem cordialidade; provavelmente estava aborrecido porque ela o fizera esperar. Era moça, malvestida, mas exageradamente pintada e parecia muito fatigada. Dali a segundos vi-a abrir a bolsa e entregar ao homem qualquer coisa. Dinheiro. O homem olhou e seu rosto tornou-se taciturno. Dirigiu-lhe palavras que não pude ouvir, mas que julguei insultuosas, pela atitude dela, que me pareceu estar a desculpar-se. Subitamente o homem inclinou-se e deu-lhe um ressonante tapa na cara. A moça soltou um grito e começou a chorar. Atraído pelo barulho, o gerente veio saber do que se tratava. Tive a impressão de que lhes dizia que fossem embora, se não soubessem comportar-se. A moça virou-se para ele e em voz alta, a ponto de se poder ouvir cada palavra, em linguagem obscena lhe disse que não se metesse no que não era da sua conta.

– Se ele me esbofeteou foi porque mereci ser esbofeteada – gritou ela.

Mulheres!... Sempre pensei que, para viver à custa do dinheiro imoralmente ganho por uma mulher, fosse preciso um sujeito vistoso e forte, com sex-appeal, ágil com a faca ou com o revólver; extraordinário que aquele sujeitinho raquítico, que a julgar pela aparência poderia ser empregadinho de algum escritório de advocacia, tivesse conseguido lugar numa profissão onde era tão grande a concorrência!


E este outro, que aparece no mesmo capítulo, um daqueles retratos em 3 por 4 esboçados em guardanapos:


Vi um sujeito que eu conhecia de vista, por frequentarmos o mesmo barbeiro, em Nice. Atarracado, idoso e grisalho, com um túmido rosto vermelho e olhos empapuçados. Era um banqueiro americano que, depois da crise, preferira deixar sua cidade natal a sujeitar-se a uma investigação. Não sei se cometera algum crime; se tal acontecera, com certeza era muito pouco importante para que as autoridades se dessem ao trabalho de lhe pedir a extradição. Tinha o ar pomposo e a falsa cordialidade do político barato, mas a expressão dos seus olhos era amedrontada e infeliz. Nunca estava completamente bêbado, nem completamente sóbrio. Sempre em companhia de alguma rameira que evidentemente procurava arrancar dele o que podia; estava agora com duas mulheres pintadas, já maduras, que o tratavam com acintosa zombaria, ao passo que ele, mal entendendo o que elas diziam, ria tolamente. A vida alegre!... Fiquei a conjeturar se não teria sido preferível ele ter ficado na sua terra e aceito o castigo. Chegaria o dia em que as mulheres o teriam depenado por completo, e nada mais lhe restaria a não ser o rio, ou uma dose excessiva de veronal.


São só duas amostras do trabalho de Maugham, e, frise-se, estão no capítulo que ele afirmou supérfluo. Não me parece, é essencial.

mas cadê o romance?

Quanto ao conflito central, isto é, os amores de Isabel e Larry, não digo que seja desinteressante. Mas não é, certamente, o que define o livro. O livro é bem maior, mais ambicioso, que essa trama nuclear, que é, a bem dizer, um pretexto para o livro. A obra, para mim, não quer ser uma narrativa, no sentido costumeiro, mas sim outras duas coisas. A primeira, uma coleção dos retratos dinâmicos de Larry, Isabel, Elliott, Gray, Sophie, cobrindo duas décadas da vida de todos eles. A segunda, uma discussão filosófica sobre a validade de duas visões de mundo antagônicas.

Quanto aos retratos, se Maugham é primoroso nos pequenos, ligeiros, que infiltra à margem da trama principal, é ainda melhor nesses grandes estudos de personagem que focalizam os protagonistas. Ao final sentimos conhecer e compreender, na medida do possível, o incomum Larry e suas buscas, angústias e incompletas descobertas; o patético e tocante Elliott, que Maugham nos ensina a desprezar e amar; a triste Sophie e o triste Gray; e especialmente Isabel, que, a meu ver, é a grande personagem do livro. Ao longo da obra percebemos claramente o amadurecimento de Larry, a formação do seu caráter, a transformação da sua dúvida numa certeza que é só dele e só serve para ele. Mas é Isabel quem tem a trajetória mais nítida, quem mais firmemente define um ponto de vista, e demonstra com ações como não só aderiu a uma visão de mundo, mas passou a incorporá-la, tão firme e confortavelmente quanto Larry materializa a visão oposta.

Mas o livro não deixa de ser um "romance", no sentido vulgar da palavra, uma história de amor de casal, só que à moda moderna (ou romântica clássica), porque tem final infeliz. Desde o Werther de Goethe, tido como o fundador do Romantismo na literatura, a tradição romântica é a dos finais infelizes. No Romantismo a mulher é originalmente inatingível; numa segunda fase, a mulher é acessível, mas a felicidade não. O núcleo do conceito romântico não é o final feliz, e sim o ideal de amor eterno e insubstituível 1. De certo modo se pode dizer que Maugham adere a essa convenção do gênero. Isabel, pelo menos, adere: na imaginação dela Larry é seu único e verdadeiro amor, ao qual ela renunciou, sacrificando-se em nome da felicidade dele. É claro que se trata de uma idealização, pois Isabel preferiu Gray porque o projeto de vida de Larry era incompatível com o seu. Mas não é de se duvidar que ela se auto-engane, e creia sinceramente na sua interpretação romântica dos fatos.

O projeto de Larry também é romântico, num sentido político-social, já que embora ele seja um idealista, se contrapondo ao mundo burguês e materialista de Isabel, seu idealismo é individualista. Seu projeto existencial alternativo diverge do modelo burguês, mas é exclusivamente individual. Nada busca e nada propõe em termos coletivos. Os aspectos político-sociais das questões tratadas não aparecem no livro, a não ser como parte da paisagem: a decadência da aristocracia, a consolidação da burguesia, a decadência da Europa e ascensão dos Estados Unidos aparecem ao fundo, entremeadas com os plots secundários. Mas para Larry, o único não conformado do elenco, é como se tais questões não existissem. Como os românticos "clássicos", ele tem uma visão individualista de mundo, onde o indivíduo é visto como um fim em si mesmo, num projeto onde a objetividade é substituída pela subjetividade, e o mundano pelo visionário. Sua busca é, portanto, alienada e romântica, pois se baseia em fuga da realidade e escapismo, elementos tradicionais da escola romântica 2, já que, como lembra Pourriol, o romantismo é, em suma, "a mentira do indivíduo como ilha", porque "afirma a insularidade do indivíduo, incompreensível do exterior" 3.

mas, e a navalha?

O confronto do materialismo contra a espiritualidade, do pragmatismo contra o romantismo, das duas visões antagônicas da vida que os protagonistas encarnam, forma o conflito central da obra, e termina irresolvido. Fica para o leitor a incumbência de julgar e escolher.

O autor, de sua parte, só toma posição ao assegurar que os materialistas, pragmáticos, dinheiristas, se dão bem. Quanto ao destino do herói espiritual, cruzado da esperança e da bondade, não sabemos o que ocorreu. O autor não esconde sua simpatia pela causa, nem seu ceticismo quanto à sua viabilidade. Se alguma parte da história for verídica — do que duvido, escritores são mentirosos profissionais —, esse livro é um fruto que nasceu da semente plantada pelo sonhador Larry.

E, nesse caso, cada leitor tem a chance de propagar mais uma onda na sequência e espalhar adiante a luz que ele quis acender. Na hora de responder à inevitável pergunta sobre o que significa o título da obra, acho que a resposta é ambígua. Os personagens e o autor, todos, tomaram partido, cada qual escolheu o caminho a seguir. É o leitor quem está sobre o fio da navalha, e agora precisa optar.

Elliott

Anotei algumas frases que dão uma ideia da personalidade da figura que rende as melhores cenas do livro. Pode não ser o melhor personagem, o mais ambicioso ou significativo, mas é o que rende as melhores cenas, as mais interessantes. Não seria justo dizer que ele é o alívio cômico do livro, a não ser que se entenda isso num contexto de humor britânico, irônico, sarcástico e que não provoca o riso, mas reflexão. Como o autor menciona a certa altura:

houve época em que adquiri certa reputação como humorista pelo simples método de dizer a verdade. Para muitas pessoas foi uma tal surpresa que pensaram que eu estava querendo ser engraçado.

Não acho que ele esteja, aqui, ser engraçado. Mas há humor, negro ou de alguma forma azedo, no desenho desse personagem. Vejamos, então, algumas tiradas mordazes de Elliott:


As más relações corrompem as boas maneiras.

Nunca passo mais de uma hora numa galeria de arte; é o máximo a que resiste o nosso poder de apreciação.

Paris. É o único lugar do mundo onde um homem civilizado pode viver.

"neste país as moças não se casam só para satisfazer suas mães e tios" – disse mrs. Bradley com um sorriso árido. – "Isto não é motivo de orgulho" (respondeu Elliott).

casamento que é considerado sob o ponto de vista de posição, fortuna e igualdade de meio leva vantagem sobre o casamento de amor.

Na França, que afinal de contas é o único país civilizado do mundo, Isabel não hesitaria em casar-se com Gray; ao fim de um ou dois anos, se a tal se sentisse inclinada, tornar-se-ia amante de Larry; Gray instalaria uma atriz de fama num luxuoso apartamento, e todos ficariam satisfeitos.

se uma pessoa tem que viver na América, não vejo razão para viver noutro lugar a não ser em Nova York.

(Ao sugerir que Isabel seduza o noivo) Há poucas coisas no mundo tão agradáveis como um almoço de piquenique saboreado com todo conforto – declarou Elliott sentenciosamente. – A velha duquesa d’Uzès costumava dizer que, em tais circunstâncias, o macho mais recalcitrante se torna sugestionável.

acha natural que resista à tentação de suplantar todas as outras? Explico-me melhor: é o mesmo que você ir a uma festa, sabendo que vai se aborrecer à grande e que lá só servirão limonada e biscoitos; mas você vai porque sabe que seus amigos dariam a vida por ir, e no entanto não foram convidados.

é mais fácil ao tipo comum de americano entrar no reino dos céus do que no Boulevard St. Germain.

Sempre achei que não há melhor educação para um rapaz do que se tornar amante de uma mulher de certa idade

se ele levasse vida normal, eu o teria visto no bar do Ritz,

Nenhuma senhora pode ficar bem-vestida sem o auxílio de uma criada particular,

"Você é ridículo, Elliott." (diz a irmã; e ele responde:) – "Não, não sou. Conheço a humanidade".

casamento só pode conservar sua força se as relações extraconjugais forem não somente toleradas, mas permitidas.

Os impostos de transmissão causa mortis e os aproveitadores da guerra estragaram a sociedade inglesa

as mulheres americanas esperam encontrar nos maridos a perfeição que as inglesas só exigem dos seus mordomos.


No fim da vida o personagem cresce e tem suas melhores cenas, porque quanto mais decai física e socialmente, e quanto mais seu mundo e seu estilo de vida se tornam obsoletos, mais ele se aferra aos seus ideais, e se torna verdadeiramente patético (no sentido culto da palavra, isto é, digno de piedade). Recebendo a extrema unção do bispo, comenta:


– Uma grande honra, caro amigo, uma grande honra – disse ele. – Entrarei no reino dos céus com uma carta de apresentação de um príncipe da Igreja. Creio que todas as portas se me abrirão.

– Receio que você vá encontrar ali certa mistura – repliquei sorrindo.

– Não tenha essa ilusão, caro amigo. Diz a Sagrada Escritura que, assim como na terra, existem distinções de classe no céu. Há serafins e querubins, anjos e arcanjos. Sempre frequentei a melhor sociedade da Europa e tenho certeza de que o mesmo se dará no céu. Nosso Senhor disse: “A Casa de meu Pai tem muitas mansõesâ€. Não seria nada correto alojar o hoi polloi num estilo a que não está habituado. ... Acredite-me, caro amigo, não haverá nenhuma dessa maldita igualdade no céu.


A relação de Elliott com a religião rendeu, aliás, as cenas mais irônicas do livro.

Antes de morrer, seu último gesto é ditar uma resposta alfinetando uma rival da sociedade, porque


Sempre fui mundano; não há motivo para esquecer as boas maneiras só porque vou deixar o mundo.


Esse ato final é um bom resumo da vida e do caráter de Elliott; viveu uma fantasia, mas cria nela absolutamente, tanto que, adverte o autor,


Teria fitado com ar de franca estupefação qualquer pessoa que lhe dissesse que levava uma vida inútil. Teria considerado essa pessoa desoladoramente plebeia.


O epitáfio escolhido por Elliott não tem qualquer relação com ele ou sua vida, embora ele não o perceba, mas é um belo poema, e deixa claro o conceito que tinha de si mesmo, como um artista incompreendido pelos mortais comuns:


| I strove with none, for none was worth my strife.
| Nature I loved, and, next to Nature, Art;
| I warm´d both hands before the fire of Life;
| It sinks; and I am ready to depart. 4


Aqui se enxerga um paralelo entre Elliott e Larry. Ambos têm a convicção de viverem da única maneira correta possível, e ambos têm convicção de que seu modo de vida, ideais e aspirações são os melhores, mas incompreensíveis para as pessoas comuns. Construir uma igreja luxuosa para ali ser sepultado vestido de conde de opereta talvez não seja tão diferente de doar todos os seus bens para buscar o Nirvana atrás do volante de um táxi.

O próprio autor ressalta que seu adorável e detestável Elliott é, de certo modo, um Quixote, alguém que se apegou tanto a uma espécie de ficção que passou a acreditar nela, viveu por ela e morreu dentro dela, fantasiado de rei medieval. Ele, na companhia dos fidalgos, "tinha a impressão de estar vivendo num passado de galanteria e esplendor", e essa fantasia se tornou a realidade de sua vida. Já Larry, indagado sobre sua insistência num estilo de viver absolutamente excêntrico, diz que "a resposta a isto é que nem todo mundo sente o que eu sinto. Felizmente para eles, talvez, a maioria dos homens está pronta a seguir o curso normal". Parece-me que sutilmente o livro incentiva a comparação entre a grotesca quixotada de Elliott e aquela outra, de Larry, que só parece muito diferente porque os ideais deste último são elevados e altruístas. Mas é difícil não perceber a simetria, porque o mundo real e contemporâneo está tão distante das aspirações de um quanto das de outro.

Larry

Larry era um "rapaz comum", na aparência e na opinião de Isabel, antes de ir para a guerra. Sua epifania ocorreu lá, ao perceber que "os mortos parecem tão irremediavelmente mortos quando mortos". Talvez essa metanoia 5 decorra de extrair, da constatação de quão mortos estão os mortos, a conclusão de estar vivo. Henrik Tikkanen expressa assim essa ideia: "a vida começa quando descobrimos que estamos vivos" 6. A soma das experiências de testemunhar centenas de mortes — inclusive a do melhor amigo —, sobreviver ao horror da guerra, e sobrevoar bem do alto os campos, deu a Larry a noção da importância da própria vida, o que o incompatibilizou com o retorno à mediocridade da condição anterior, de inocência. Como disse W. Inge, "o fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso" 7.

Larry volta da guerra transformado e sente-se compelido a iniciar uma jornada de busca. Principia pelos livros. Isabel não entende:


"E qual a finalidade de tudo isto?"

"Adquirir cultura" – respondeu ele sorrindo.

"Não me parece muito prático" (Isabel comenta).


Larry não sabia bem o que buscava. Quando lhe perguntam o que está procurando nesses livros, ele diz: “se eu soubesse, estaria pelo menos no meio do caminhoâ€:


Vejo vastas planícies do espírito à minha frente, acenando-me, e estou ansioso por explorá-las.


Mas acaba especificando sua meta, e é ambiciosa:


Quero ter certeza da existência ou da não existência de Deus. Quero conhecer a origem do mal. Quero saber se tenho uma alma imortal, ou se a morte põe fim a tudo


Isabel questiona a utilidade dessa investigação, e ele explica:


a gente pode argumentar que o fato de os homens fazerem essas perguntas há milhares de anos prova que eles não podem deixar de perguntar, e continuarão perguntando. Além do mais, não é verdade que ninguém encontrou resposta. Existem mais respostas do que perguntas 8


E anuncia o paralelo da sua jornada com a de Ruysbroek, um místico flamengo que viveu no século XIV; de fato pela biografia do último percebem-se os paralelos. Jan van Ruysbroek (1293-1381), ou seja, o Jan que nasceu na cidade de Ruysbroek (perto de Bruxelas), aos 16 anos se internou num monastério para se dedicar à meditação e à escrita de textos místicos, e ficou conhecido pela algunha de "professor extático". Ensinou que "a alma encontra Deus nas suas próprias profundezas". Pregava que a realização verdadeira do cristão se faz em três etapas (ou degraus de uma "escada espiritual", que são a vida ativa, a vida íntima e a vida contemplativa. Gostava de meditar caminhando solitário pelos matos. Seus escritos continham traços de uma espécie de panteísmo (aparentemente inconsciente) 9. Há realmente alguma similitude com a jornada de Larry: busca mística desde a juventude, caracterizada pelo afastamento da sua comunidade de origem, busca da solidão e do ermo para meditar, a procura de uma ideia de Deus nas profundezas da própria alma, e a dedicação a uma vida ativa, paralela à vida espiritual (na forma da procura periódica de trabalhos físicos intensos, como na mina e na lavoura).

Acho muito curioso que Isabel confunda Ruysbroek com Ruysdael, ao tentar rememorar a conversa com Larry. Ruysdael (1628-1682) foi um pintor paisagista holandês, conhecido por quadros da natureza de seu país, onde predomina o céu e as nuvens: são quadros onde o céu é a parte mais importante e destacada da paisagem, às vezes ocupando 3/4 da tela 10. Também foi um pintor que viveu e morreu na pobreza 11, e não é incluído pelos críticos entre os grandes mestres, é tratado como um dos "holandeses menores" 12. Isabel comete uma espécie de ato falho ao confundir o modelo inspirador de Larry. É como se estivesse inconscientemente prevendo que em vez de um grande místico Larry estivesse a caminho de se tornar um artista menor, pobre, cuja obra mira o céu mas não passa de nuvens, metaforicamente falando. Há aí um easter egg 13, um pequena esperteza de Maugham, camuflada para o leitor xereta.

O fato é que Isabel não se conforma com o projeto de Larry:


"Que pretende fazer com toda essa sabedoria?"

"Se eu algum dia adquirir sabedoria, creio que serei então bastante sábio para saber o que fazer com ela".


Larry, dizendo que pretende "vadiar", se entrega por anos ao que Isabel chama de "uma espécie de ociosidade laboriosa", e o autor comenta que "sua vagabundagem parece abranger um trabalho muito cansativo". E se desloca da humanidade, se isola, porque "não estamos habituados a pessoas que fazem certas coisas simplesmente pelo amor de um Deus em quem elas não acreditam".

Percebemos, depois, que ele "esteve procurando uma filosofia, ou talvez uma religião, e uma norma de vida que lhe satisfaça tanto o cérebro como o coração". E na verdade sua investigação tinha uma natureza prática:

Acha você que pode haver no mundo coisa mais prática do que aprender a viver da melhor maneira possível?


O que ele persegue é a eudaimonia, algo como "desabrochar humano" 14, uma ideia característica da moral da antiguidade, uma moral da felicidade, alheia à ideia de salvação sobrenatural. É uma busca fora de moda, mas não é nova. Embora essa não seja a prioridade hoje, houve época em que a busca da felicidade, o "aprender a viver da melhor maneira possível", era uma das questões mais relevantes para a filosofia. No sentido filosófico, isto é, naquele que entende felicidade como bem estar, há três descrições para o fenômeno, as duas primeiras de ordem subjetiva (relacionam felicidade com estados subjetivos individuais): a) o hedonismo, que identifica felicidade com experiências prazerosas; b) teorias fundadas no desejo, que relacionam felicidade com a satisfação dos desejos da pessoa. A terceira visão é objetiva, defende que certos fatores beneficiam o sujeito independentemente de suas atitudes ou sentimentos, pois já bens prudenciais objetivos. Aristóteles é o melhor representante dessa terceira teoria. Para ele a felicidade (a eudaimonia) consiste numa vida de atividade virtuosa, na plena realização das capacidades humanas. Aristóteles tinha uma definição funcional de bem, e via a ética como uma extensão lógica da biologia, porque numa como na outra algo é bom quando cumpre sua função. Uma vida boa é a que cumpre seu objetivo, usando ao máximo todas as características que tornam o vivente humano 15. Na época de Larry a filosofia tinha abandonado esse tema 16, mas o protagonista de Maugham não era realmente um homem do seu tempo, e buscava, como o filósofo preconizou, o desabrochar humano, a realização do seu máximo potencial. Eudaimonia não é exatamente um sinônimo de felicidade, ou só o é numa acepção: aquela em que felicidade é entendida não como um sentimento, mas como um agir bem, um modo de ser virtuoso, que realiza a excelência humana. A felicidade, para o eudemonismo, é inseparável da virtude, e depende desta 17. Já a virtude, na visão de Sócrates, supõe o conhecimento racional do bem, razão pela qual pode ser ensinada e aprendida (numa busca intelectual, como Larry faz a princípio). O que há de comum entre todas as virtudes, ensina Sócrates, é a sabedoria, que é o poder da alma sobre o corpo, a temperança ou o domínio de si mesmo. Possibilitando o domínio do corpo, a temperança permite que a alma realize as atividades que lhe são próprias, chegando à ciência do bem. O vício não passa de ignorância, pois ninguém pode fazer o mal voluntariamente 18.

A jornada de Larry começa com a dúvida, e ele busca primeiro o caminho da razão, às voltas com o que Camus chamaria de único problema concreto existente, o de sermos santos sem Deus 19. Mas não falta quem o advirta que ele, sem saber, "é um homem profundamente religioso que não acredita em Deus. Deus o procurará". E não há contradição necessária nisso, porque de fato há quem seja religioso sem crer. Nathan Söderblom (1866-1931), arcebispo sueco e estudioso das religiões, definia assim: "religiosa ou piedosa é a pessoa para quem algo é sagrado" 20. Esse conceito se aplica a Larry, para quem, havendo ou não Deus, a vida é sagrada.

Frustrado na via racional, ele busca depois a via espiritual, para concluir que “O Deus que pode ser compreendido não é Deus. Quem poderá explicar, por palavras, o Infinito?†A verdade que encontrou só é compreensível para ele, como mostra o poema que ele cita 21:


| If the red slayer think he slays,
| Or if the slain think he is slain,
| They know not well the subtle ways
| I keep, and pass, and turn again.

| Far or forgot to me is near;
| Shadow and sunlight are the same;
| The vanished gods to me appear;
| And one to me are shame and fame.

| They reckon ill who leave me out;
| When me they fly, I am the wings;
| I am the doubter and the doubt;
| And I the hymn the Brahmin sings.

| The strong gods pine for my abode,
| And pine in vain the sacred Seven,
| But thou, meek lover of the good!
| Find me, and turn thy back on heaven.


De fato, coligindo muitos exemplos históricos, Eliade anota que a experiência religiosa autêntica é necessariamente "terrífica e irracional", pois nela o homem


"descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder; encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a perfeita plenitude do ser. r. otto designa todas essas experiências como numinosas (do latim numen, “deusâ€) porque elas são provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino. o numinoso singulariza se como qualquer coisa de ganz andere, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano ou cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criaturaâ€, ou seja – segundo os termos com que abraão se dirigiu ao senhor –, de não ser “senão cinza e pó†(gênesis, 18: 27)".


E essa experiência não cabe em palavras, porque


"O sagrado manifesta se sempre como uma realidade inteiramente diferente das realidades “naturaisâ€. É certo que a linguagem exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante termos tirados dessa mesma experiência natural" 22.


Larry alcança a sua iluminação, mas não segue o caminho do ermitão, porque


Nada no mundo é permanente, e somos tolos em desejar que uma coisa perdure, mas mais tolos ainda seríamos se não a apreciássemos enquanto a temos. Se mutabilidade é da essência da existência, nada mais natural do que fazer dela a premissa da nossa filosofia. ... Não era minha vocação abandonar o mundo e retirar-me ao claustro, e sim viver no mundo e amar as coisas do mundo, não por causa delas e sim por causa do Infinito que está nelas.


Para o problema do mal, que o afligia, encontra também uma resposta:


Ramakrishna considerava o mundo um esporte de Deus. “É como um jogoâ€, disse ele. “Nesse jogo há alegria e tristeza, virtude e vício, saber e ignorância, bem e mal... O jogo não poderá continuar se o pecado e a tristeza forem completamente banidos da criação.†Não concordo com tal teoria. A melhor sugestão que posso fazer é que, quando o Absoluto se manifestou no mundo, o mal era a natural correlação do bem. Sem o incalculável horror de uma convulsão na crosta terrestre, jamais teríamos tido a maravilhosa beleza do Himalaia. O artífice chinês que faz um vaso de porcelana finíssima pode dar-lhe um elegante formato, ornamentá-lo com belíssimos desenhos, colori-lo de lindos tons e dar-lhe lustre perfeito, mas, devido à própria natureza do vaso, não pode impedir que seja frágil. Se cair no chão, quebrar-se-á em inúmeros pedaços. Não acha você possível que, da mesma forma, os valores que prezamos neste mundo só possam existir combinados com o mal?


Por fim, o que parece surpreendente, ao retornar da peregrinação espiritual, e antes de desaparecer na América como uma espécie de eremita urbano, sozinho na multidão, Larry escreve um livro, que não corresponde à expectativa de Maugham, nem do leitor. Não é a narrativa da sua jornada espiritual, e das descobertas místicas que fez, nem um manual para transmitir lições. É uma


"coleção de ensaios ... sobre pessoas famosas. A escolha de Larry deixou-me perplexo. Havia um de Sila, ditador romano que, tendo conseguido o poder absoluto, abdicou para levar vida retirada; um de Akbar, conquistador mongol, que obteve um império; um de Rubens, um de Goethe e um sobre Lord Chesterfield das Cartas ... me ocorreu que à sua maneira cada um deles tinha tido imenso sucesso na vida e pareceu-me que fora isso que interessara a Larry. Ele ficara curioso para ver qual fora, no fim, o resultado.


Também Maugham encerra seu livro afirmando que sua obra, assim como a de Larry, é uma coleção de histórias de gente de sucesso, isto é, gente que alcançou o que queria. O que só faz pensar na diferença entre obter o que se quer e ser feliz. Talvez o simplório Gray, o espiritualizado Larry e o iludido Elliott tenham, ao conseguir o que queriam, alcançado um estado de contentamento duradouro. Quanto a Sophie, o que ela queria era a ruína, e foi o que obteve. E Isabel, o personagem mais complexo do livro, certamente obteve o que queria. Sua história é de sucesso, sem dúvida. Dificilmente, contudo, se pode crer que ela tenha sido feliz. O ódio que sentiu de Sophie, as justificativas que teve de inventar para justificar o casamento com Gray, o auto-engano que pratica ou finge para explicar porque abriu mão de Larry, a futilidade da vida que escolheu e alcançou, são pistas claras de que algo está muito errado.

felizes para sempre

Achei interessante o comentário de Maugham acerca de histórias que terminam em casamento. Depois de comentar que seu livro "não tem grande enredo, não acaba com morte nem com casamento", ele explica:

A morte põe termo a todas as coisas e é, portanto, fim lógico para uma história; mas também o casamento é solução muito correta e os blasés fariam mal em escarnecer daquilo que comumente se diz que “acabou bemâ€. O instinto popular anda acertado ao afirmar que, com isto, tudo o que devia ser dito foi dito. Quando, depois de inúmeras vicissitudes, macho e fêmea finalmente se reúnem, sua função biológica foi cumprida e o interesse passa à geração vindoura.

Isso me lembrou uma passagem de Bettelhein 23, que, analisando porque os contos de fadas geralmente acabam em casamento, chegou à mesma conclusão, anotando que os finais desse tipo


"ensinam que quando uma pessoa assim o fez, alcançou o máximo, em segurança emocional de existência e permanência de relação disponível para o homem; e só isto pode dissipar o medo da morte... formando uma verdadeira relação interpessoal, a pessoa escapa da ansiedade de separação que a persegue"


Não deixa de ser esse também o pensamento de Isabel, Louisa, Elliott e sua turma. Sobre Isabel, aliás, que é a personagem mais complexa do livro, aquela que mais muda internamente ao longo da narração, pode-se certamente afirmar que, pelos termos estabelecidos pelo próprio Maugham ela conseguiu o melhor que é possível em termos de amor de casal: um marido atraente, apaixonado, fiel, bom provedor e bom pai; a questão é se isso é satisfatório.

A felicidade, apesar da visão socrática mencionada antes (isto é, entendida como realização da plena potencialidade humana), e que parecia ser a preferida de Larry, também pode ser entendida de outros dois modos: hedonismo (busca do prazer) e satisfação dos desejos. Para essa terceira visão, a felicidade é uma espécie de acordo consigo mesmo: quem deseja pouco, tem mais chance de obter o que deseja, e de ser feliz; quem ambiciona muito está mais distante da felicidade. Essa parece ser a semelhança essencial e a divergência acidental entre Larry e Elliot: em comum eles têm o acordo consigo mesmos, porque ambos obtêm, realmente, o que desejavam; a divergência acidental é quanto ao alvo do desejo, espiritual e elevado para Larry, e ligado só às aparências materiais para Elliott.

Quanto a Isabel, é pouco provável que tenha chegado a esse acordo consigo mesma. Ela é a personagem mais desconectada da realidade, porque seu alvo é o mais impraticável: ela não quer Larry nem Gray, quer um homem imaginário que reúna as qualidades de um e de outro, que seja uma fusão dos dois, um poeta místico aventureiro que seja simultaneamente um bom provedor e ajustado pai de família. Ela ama, enfim, um homem que só existe na sua imaginação. Pode-se dizer, então, que ela ama Larry e também Gray, se entendermos o amor como uma relação essencialmente egoísta, onde se ama o bem que o outro proporciona. Esse, aliás, foi um ponto em que concordaram Platão e Aristóteles: ambos ressaltaram como característica do amor a falta, a insuficiência, a necessidade e, ao mesmo tempo, o desejo de conquistar e de conservar o que não se possui, isto é, aquilo que falta 24; o fundamento do amor é a necessidade, a imperfeição ou deficiência, o que faz do amor um fenômeno tipicamente humano [^humano]. Enquanto Larry escolhe buscar a felicidade pelo caminho socrático, perseguindo o desabrochar das suas potencialidades espirituais, e Elliott adota o modelo da busca da satisfação dos desejos (egoístas e fúteis, no caso dele), Isabel escolhe o caminho hedonista, e procura a felicidade no prazer. Foge de Larry, que, com todas as qualidades, seria uma fonte de angústias e privações desprazerosas, e se consorcia com Gray na busca dos gozos materiais que ele pode prover.

Isabel escolhe até onde quer sair do paraíso da sua ignorância do amor. Relembre-se a frase de Inge: "o fruto da árvore do conhecimento sempre nos expulsa de algum paraíso". Sem experimentar até onde iria seu envolvimento com Larry, sem extrair dali todo potencial de êxtases e dores que um amor daquele tipo poderia trazer, Isabel permanece na ignorância e, assim, está resguardada de um certo tipo de sofrimento, o da nostalgia. E essa ignorância possibilita que busque em Gray outras modalidades de prazeres, que podem substituir os que não conheceu, justamente porque não os conhece. Diferente é o caso de Sophie, que provou da maçã do amor verdadeiro e, expulsa do paraíso da ignorância, não pode mais retornar à condição precedente, nem viver na privação do que já conhece. Por isso é que para ela um projeto amoroso alternativo é inviável, e ela se autodestrói numa espiral de álcool, sexo e drogas, expedientes alternativos com que busca minorar sua permanente crise de abstinência de uma droga mais poderosa, a satisfação amorosa plena.

Larry espelha e contradiz Elliot num aspecto, o tipo de ambição, que é espiritual no primeiro e material no segundo; e também espelha e contradiz Gray num outro aspecto, a adaptação à realidade, ausente no primeiro, completa no segundo. Esse é um primeiro triângulo de personagens contrastando e se completando. E o outro envolve Isabel, Sophie e Suzanne. Isabel é de certa forma o negativo de Sophie (esta viveu a paixão verdadeira e fugaz, abriu mão da segurança), e por isso os caminhos delas, que começaram em comum, no mesmo núcleo de comunidade e sociedade, se bifurcam e uma ruma para o "sucesso" burguês e a outra para a destruição; e ambas se contrapõem a Suzanne, que não quis uma coisa nem outra, e parecia a mais feliz das três, vivendo uma mistura de pragmatismo e desejo, um espécie de romantismo cético e frio.

No fim, cada personagem é ofertado ao leitor, pelo autor, para representar um fragmento, uma faceta da condição/experiência humana, para servir de material de estudo ao leitor. Não para fins de julgamento: julgar os personagens é sempre fácil, mas improdutivo. Mais difícil, e proveitoso, é tentar compreender o personagem: nesse esforço o leitor pode compreender aspectos de si mesmo, dos quais às vezes não suspeitava. Como ensinou George Eliot,


"O maior benefício que devemos ao artista, seja pintor, poeta ou romancista, é o desenvolvimento da nossa empatia. Argumentos fundados em generalizações estatísticas requerem uma empatia pré-fabricada, um sentimento moral previamente ativo; mas uma imagem da vida humana, tal como um grande artista pode fornecer, surpreende até o trivial e o egoísta levando-os a focalizar aquela parte deles mesmos, que pode ser chamada a matéria prima do sentimento moral. (...) A arte é o que há de mais próximo da vida; é um modo de amplificar a experiência e estender nosso contato com os semelhantes para além do nosso destino pessoal" 25


É para isso, para estender nossa compreensão do outro para além das fronteiras da nossa experiência individual, que serve a literatura, que, como disse José Castello, é um potente instrumento de interpretação do mundo, não porque forneça respostas, e sim porque é uma máquina de perguntas.

coletânea de frases

A resenha em si acabou. Nesta última seção apenas coletei algumas frases do livro, sem relação específica com os temas tratados antes. Tentei agrupá-las por temas, mas algumas escapam das classificações.

sobre livros, escrever, e arte em geral


você sabe que, quando uma pessoa não consegue fazer nada, vira escritor

Lembro-me de que uma vez lhe perguntei se não sentia vontade de escrever. Ele me respondeu que não tinha sobre o quê escrever. – É esta a razão mais inconcludente que conheço para uma pessoa não escrever.

por mais desdenhosas que sejam as críticas dos intelectuais, nós, o público, no fundo do coração, amamos uma história que acaba bem.

um escritor passa meses escrevendo um livro, pondo talvez nele seu coração e seu sangue, e depois ele fica jogado sobre uma mesa, para ser lido quando as pessoas não tiverem nada de melhor para fazer.


sobre a humanidade e os homens


os homens não são somente eles; são também a região onde nasceram, a fazenda ou o apartamento da cidade onde aprenderam a andar, os brinquedos com que brincaram quando crianças, as lendas que ouviram dos mais velhos, a comida de que se alimentaram, as escolas que frequentaram, os esportes em que se exercitaram, os poetas que leram e o Deus em que acreditaram. Todas essas coisas fizeram deles o que são, e essas coisas ninguém pode conhecê-las somente por ouvir dizer, e sim se as tiver sentido. Só pode conhecê-las quem é parte delas.

nós, americanos, gostamos de variar – dizia ele. – É, ao mesmo tempo, a nossa fraqueza e a nossa força.

no estudo existe o lobo solitário, da mesma maneira que existe o lobo que se move com a alcateia.

faz muito tempo que, para abafar as opiniões que temiam, os filistinos abandonaram os instrumentos de tortura; descobriram muito mais perigosa arma de destruição – a zombaria.

Pelo que acontecer enquanto eu estiver de costas, nem Deus nem as criaturas poderão responsabilizar-me.

Talvez você se tenha esquecido da maior vantagem do dinheiro: economiza tempo. A vida é curta e há tanto para fazer que não podemos perder um só minuto.

Quando estudante de medicina eu vira muitos cadáveres, e durante a guerra mais ainda. O que mais me consternara fora notar como eles pareciam insignificantes. Não tinham dignidade. Fantoches que o dono do espetáculo atirara fora.

Vocês, europeus, nada conhecem da América. Pelo fato de amontoarmos grandes fortunas, acham que é só dinheiro que nos interessa. Pouco ligamos a ele; assim que o possuímos tratamos logo de gastá-lo, às vezes bem, às vezes mal, mas em todo caso o gastamos. Dinheiro nada significa para nós; é apenas o símbolo do sucesso. Somos os maiores idealistas do mundo; só que, no meu modo de pensar, pusemos o nosso ideal onde não devia estar;

É sempre difícil conversar com um bêbado, e não há dúvida de que os sóbrios levam desvantagem.

O mundo é um círculo vicioso – observei. – Antigamente mandavam, da minha pátria para a América, a ovelha negra da família; pelo que vejo, mandam-na hoje da América para a Europa. –

Todas as pessoas importantes têm, em sua companhia, um subordinado de confiança. Estes dependentes são muito susceptíveis e, quando não são tratados com a consideração a que se julgam com direito, com constantes e oportunas indiretas envenenam o espírito dos patrões contra as pessoas que incorreram no seu desagrado. Vale a pena a gente estar de bem com eles.

De acordo com o bom e simples são Mateus, foi este o fim da história. Mas não foi, não. O demônio era astucioso e de novo veio a Jesus: “Se aceitares a vergonha e a ignomínia, a flagelação, uma coroa de espinhos e a morte na cruz, salvarás a humanidade, pois maior amor não existe no mundo que o amor do homem que dá a vida por um amigoâ€. E Jesus sucumbiu. O diabo riu a mais não poder, pois bem sabia que pecados iriam os homens cometer em nome do seu redentor. ... Não pude deixar de refletir que, ao ver as cruéis garras desencadeadas pela cristandade, as perseguições, as torturas que cristãos infligiram em cristãos, a maldade, a hipocrisia, a intolerância, ao ver essas coisas o demônio deve examinar o balanço com certa satisfação. E, ao lembrar-se de que tudo isto fez cair sobre a humanidade o pesado fardo da noção do pecado – noção que obscureceu a beleza da noite estrelada e atirou funesta sombra sobre as fugazes alegrias de um mundo feito para ser apreciado –, o diabo há de rir lá no seu íntimo, murmurando: “Dai ao Demo o seu quinhãoâ€.


sobre amor, sexo, casamento, relacionamentos


Acho uma grandíssima tolice dizer que pode existir amor sem paixão; as pessoas que afirmam que o amor pode perdurar depois de esgotada a paixão referem-se a outro sentimento, afeição, bondade, comunhão de gostos e interesses, hábito. Principalmente hábito. (...) Claro que pode haver desejo sem amor. Desejo não é paixão. O desejo é a consequência natural do instinto sexual e não tem maior importância do que qualquer outra função animal. (...) a não ser que o amor seja paixão, não é amor, é outro sentimento; (...) e a paixão não aumenta com a satisfação e sim com a dificuldade.

quando a paixão se apodera de um coração, este inventa, para provar que por amor todo sacrifício é pouco, razões não somente plausíveis, mas conclusivas.

no momento atual estamos vivendo num país onde toda irregularidade sexual é facilitada, e onde o casamento encontra inúmeros obstáculos.

Eu me pintara um pouco; o senhor sabe, em Paris isto é preciso, senão a gente parece tão nua!... era inevitável que acontecesse o inevitável.

amor não é bom marinheiro e definha-se numa viagem por mar.

Sou filósofo e sei que coisa que não falta no mar é peixe.

geralmente a melhor maneira de vencer o desejo é satisfazê-lo.

Creia-me, amigo, os outros podem dizer o que quiserem, mas o casamento continua sendo a melhor profissão para a mulher.

dos pecados que cometi com Larry nada no mundo me fará arrepender. Nunca, nunca, nunca!


sobre mulheres


se você tivesse uma filha moça, ficaria sabendo que é relativamente mais fácil lidar com um tourinho do que com ela.

as mulheres estão sempre dispostas a ouvir uma dissertação sobre o amor,

Eu nunca tivera muita fé na intuição das mulheres; geralmente coincide demais com os desejos delas,

A vida seria dura para nós, pobres mulheres, se não fosse a incrível vaidade dos homens.


Bibliografia

Abbagnano, Nicola (2007). Dicionário de Filosofia. 5ª ed.. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo : Martins Fontes. ISBN 978-85-336-2356-9

Bettelhein, Bruno (2002). A psicanálise nos contos de fadas (The uses of enchantment: the meaning and importance of Fairy Tales). Trad. Arlene Caetano. São Paulo: Ed. Paz e Terra.

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Strickland, Carol & Boswell, John (2001). Arte Comentada. Trad. Ângela Lobo de Andrade. 6ª ed., São Paulo : Ediouro, 197 pp..






  1. Nunes, 2006. 



  2. Nunes, 2006. 



  3. Pourriol, 2011. 



  4. "Dying Speech of an Old Philosopher" (últimas palavras de um velho filósofo), de Walter Savage Landor (1775-1864). Tradução livre: "A ninguém combati, pois ninguém era digno do meu combate; / Amei a Natureza e, abaixo dela, a Arte; / Esquentei as mãos na chama da Vida; / Ela míngua; e estou pronto para partir" 



  5. Mudança de pensamento, de ideia, de modo de viver, conversão moral ou espiritual, ou reconstrução psicológica (Burton, 2105). 



  6. Gaarder, Hellern & Notaker, 1989. 



  7. "The fruit of the tree of knowledge always expels us from some paradise"; a frase está num livro de William Ralph Inge publicado em 1907; fonte: Wikiquote..]. 



  8. "Muitos dizem que a literatura não serve para nada. Penso, ao contrário, que ela é um potente instrumento de interpretação do mundo. Não que ela se pretenda dona da verdade, ou forneça respostas para nossas inquietações. A literatura não oferece soluções, mas dúvidas. Não é uma máquina de certezas, mas de perguntas" (Castello, 2010). 



  9. Hooper & Chisholm, 1911, v. XXIII, p. 947. 



  10. Alguns exemplos aqui



  11. Hooper & Chisholm, 1911, v. XXIII, p. 948. 



  12. Strickland, 2001. 



  13. Easter egg (ovo de páscoa) é como se chama, na informática originalmente, uma informação oculta num programa ou numa mensagem, para ser encontrada pelo usuário/destinatário após certo esforço, como uma espécie de bônus. V. aqui



  14. Aristóteles, Ethica eudemia, apud Abbagnano, 2007. 



  15. Buckingham, 2011. 



  16. Comte-Sponteville, 2005. Nietzsche disse que ‘A filosofia se divorciou da ciência ao indagar com qual conhecimento da vida e do mundo o homem vive mais feliz. Isso aconteceu nas escolas socráticas: tomando o ponto de vista da felicidade, pôs-se uma ligadura nas veias de investigação científica’ (Nietzsche, 1891, p.7). 



  17. Parry, 2014. 



  18. Garschagen, 1999. 



  19. A frase é: "... podemos ser santos sem Deus, é o único problema concreto que hoje conheço" (Camus, A peste, p.237). 



  20. Gaarder, Hellern & Notaker, 1989. 



  21. Brahma, de Ralph Waldo Emerson (1803-1882). Tradução livre: Se o rubro assassino acha que mata, / ou se sua vítima acha que morre, / é que ignoram por que meios sutis / eu preservo, desapareço, e ressurjo. / Longe ou esquecido para mim é perto; / sombra e luz são o mesmo; / os deuses mortos vêm a mim; / e iguais são para mim vexame e fama. / Pobre do que me ausenta; / quando me voam, eu sou as asas; / eu sou o cético e sou a dúvida; / e sou o hino que o brâmane entoa. / Fortes deuses penam por meu abrigo, / e em vão sofrem os sete santos, / mas você, meigo amante do bem! / encontre-me, e volte ao paraíso. 



  22. Eliade, 1957, p.12-13. 



  23. Bettelhein, 2002. 



  24. Platão, "O banquete", 200a, apud Abbagnano, 2007. 



  25. "The greatest benefit we owe to the artist, whether painter, poet, or novelist, is the extension of our sympathies. Appeals founded on generalizations and statistics require a sympathy ready-made, a moral sentiment already in activity; but a picture of human life such as a great artist can give, surprises even the trivial and the selfish into that attention to what is a part from themselves, which may be called the raw material of moral sentiment. (...) Art is the nearest thing to life; it is a mode of amplifying experience and extending our contact with our fellow-men beyond the bounds of our personal lot" (Eliot, 1856).