[1] Peço licença para reproduzir um techo da minha resenha sobre Madame Bovary, outro personagem fáustico: Fausto é um dos mitos literários mais célebres. Surgiu como lenda transmitida oralmente, reduzida a escrito por um anônimo em Frankfurt em 1587, num livro de enorme sucesso, que teve 22 edições em dez anos e foi copiado, imitado, traduzido para vários idiomas e fez fama na Europa toda. Em 1590 o célebre dramaturgo Christopher Marlowe escreveu uma peça baseada numa das versões dessa obra. Goethe trabalhou no seu Fausto, o mais famoso até hoje, de 1771 até 1832, ou seja, praticamente toda sua vida adulta. E a partir da obra dele Fausto se incorporou ao universo literário e as versões, adaptações, releituras e paródias são quase incontáveis. Como observa Dabezies (2005) entre os mitos literários Fausto é “um paradigma quase completo”.
O Fausto das lendas orais medievais é um bruxo ambicioso que troca sua alma pelo conhecimento da magia, e sofre uma morte cruel. Sua história é redigida com intenção de fazer rir e meter medo, simultaneamente. O de Marlowe segue esse modelo farsesco, mas tem ambições um pouco mais heroicas; a comicidade é dada pelo contraste entre o sábio intelectual que não consegue se livrar das trapaças do diabo e ruma para a perdição, enquanto seu criado, um bufão burlesco, mas cheio de bom senso, escapa (um esquema similar ao Dom-Quixote / Sancho Pança).
O Fausto de Goethe e dos românticos ambiciona o saber, “um titã em revolta contra um mundo malfeito, um individualista suficientemente audacioso para desafiar a moralidade, a sociedade, a religião”. Em algumas versões ele é salvo, ou pela nobreza de suas aspirações, ou pelo amor de uma mulher.
O Fausto moderno segue esse modelo heroico, é um Prometeu à moda do super-homem de Nietzsche, uma figura ideal da humanidade moderna que aspira à liberdade e ao progresso, é movido pela vontade de potência.
Porque foi uma das ideias manipuladas pelos nacional-socialistas, a figura fáustica foi estigmatizada depois da 2ª Guerra, e hoje é menos popular na literatura, talvez porque nos dias atuais “tenhamos menos necessidade de figuras simbólicas do homem às voltas com seus demônios” (Dabezies, 2005, p.339).
Em suma, o Fausto medieval é o homem da Renascença, querendo o poder, o saber e o prazer. O romantismo o relê como um heroi modelo de humanidade, com desejo metafísico de infinito, aspirando ao conhecimento e ao amor, terminando por estender suas pretensões além dos limites da humanidade e rumando assim para a ruína. O Fausto moderno é imagem ideal do homem moderno, liberto das representações antigas e conquistando sem drama o saber e a força, mas lembrando que o homem não afasta facilmente da sua vida o mal e o erro, nem a ambiguidade dos seus poderes aumentados. Os dois motores que dão força ao mito são o ímpeto que move o homem e o peso que o mal e a tentação têm (Dabezies, 2005, p.343)
[2] Conrad escreveu também outro livro, “O duelo” (até onde sei sem edição em português), que inspirou um excelente filme de Ridley Scott, “Os duelistas”.
[3]
Aqui. É um daqueles raros casos em que o filme é tão bom quanto o livro em que se baseou (ou, neste caso, creio que ainda melhor).
[4] “A viagem é o
topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo (…), Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos (…), Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71, de Ralph Nelson (…)”. Fragmento do
curso de cinema de André Setaro. Os heróis são sempre viajantes, quase nunca permanecem num mesmo lugar (Pellegrini, 1995). O tema da viagem é a descrição de um itinerário físico durante o qual o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento,ou do pecado à salvação, do Erro inicial à Verdade final. Símbolo de transcendência ou libertação (Setaro, 2015). Do ponto de vista espiritual, uma jornada ou viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço, um deslocar-se de um lugar para outro, simboliza a expressão de um urgente desejo de descoberta e de mudança (Pellegrini, 1995). Geralmente, mas não necessariamente, trata-se de uma jornada solitária ou peregrinação, onde o iniciado descobre a natureza da morte. Muitas vezes o herói é guiado por um mestre de iniciação, ou por uma figura feminina superior (Anima) (Jung, 2000). Para fins simbólico-literários, ademais, a viagem não precisa ser literal: um trajeto curto, apenas uns poucos metros, podem representar a viagem para os fins metafóricos, desde que o herói o percorra para buscar um objetivo, sofra no percurso, e ao final sofra uma transformação (percorrer um labirinto, por exemplo, real ou metafórico, é uma viagem, para fins simbólicos). A Odisseia é o padrão histórico da viagem do herói. Uma lista de livros ou filmes onde a viagem é componente fundamental seria imensa. O IMDB, por exemplo, lista 785 filmes na categoria roadmovie (
fonte).
[5] Campbell, 1990, p.155. O oceano simboliza o inconsciente, o desconhecido. O mar também simboliza incerteza, dúvida, indecisão, e simboliza o coração humano, lugar das paixões (Chevalier, p.592-3); simboliza o caos primordial e a essência divina (Chevalier, p.650).
[6] O self é o símbolo da totalidade psíquica, o núcleo mais profundo da psique. Símbolos do Self para o homem um iniciador masculino, guru, guardião, velho sábio, Merlin, Hermes. O grande homem interior age como um redentor que tira o inconsciente do mundo e dos seus sofrimentos para levá-lo de volta à sua esfera original eterna. É o alvo final da vida. O objetivo principal do homem não é comer, beber, etc., mas ser humano. A orientação extrovertida do ego em direção ao mundo exterior há de desaparecer para dar lugar ao homem cósmico. Isso acontece quando o ego se incorpora ao Self. O fluxo discursivo das representações do ego (que vai de um pensamento a outro) e de seus desejos (que correm de um objeto a outro) acalmam-se quando é encontrado o grande homem interior (Jung, 2000, p.196-210, passim).
[7] Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu “erro”.
[8] Só para lembrar alguns, Gatsby (de ‘O grande Gatsby’), Godot (de ’Esperando Godot’), Natalia (de ‘O eterno marido’ de Dostoievski), Tristão (do ‘Memorial de Ayres’ de Machado de Assis), Rosa (de ‘O último tango em Paris’, de Bertolucci), Laura Palmer (do seriado cult ‘Twin Peaks’). O personagem ausente não precisa ficar invisível até o fim; para caracterizar-se como tal basta que esteja fora do palco por um tempo relevante, durante o qual a história versa sobre ele e cria o suspense e o interesse em torno dele.
[9] Na literatura “a geografia é metáfora da psique” (Foster, 2010, p.164). O mesmo autor anota que “Conrad envia os personagens ao coração das trevas para descobrirem a escuridão dos próprios corações”. Jung observa que “paisagens nos sonhos e na arte representam um estado de espírito inexprimível” (Jung, 2000).
[10] Chevalier, p.602.
[11] Para quem tiver interesse na história da colonização belga do Congo/Zaire, que é o pano de fundo da narrativa contida em “Coração das trevas”, há dados
aqui;
aqui e
aqui. Há imagens chocantes
aqui. Não posso afiançar a imparcialidade de nenhum desses relatos, apresento as indicações para que o leitor forme sua própria opinião. As fotos são terríveis, e, se forem autênticas, justificam as últimas palavras de Kurtz. Aliás, no filme, o Kurtz americano relata, numa das muitas falas que não estão no livro, a cena da amputação coletiva e do horror da pilha de bracinhos empilhados.