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Apocalypse Now



‘Apocalypse Now’ faz lembrar ‘A Peste’ de Camus. O filme é existencialista na medida em que mostra a guerra, o mundo, o ser humano e a vida, enfim, como um grande absurdo. Camus escreveu, na sua metáfora literária, que a peste era ‘a vida, nada mais’. Coppola define também a vida numa das frases mais famosas do cinema: ‘o horror, o horror’.

O filme é libelo contra a guerra, e fica claro que não trata desta ou daquela guerra. Baseia-se no livro ‘O coração das trevas’, que Joseph Conrad escreveu em 1902 (temos uma resenha dele aqui), e refere-se a todas as guerras de todos os tempos. Interpretar o filme literalmente, embora seja tentador e fácil, é desperdiçá-lo. Olhado de mais longe, de fora da dimensão estreita do momento histórico-político que a diegese1 retrata, ‘Apocalypse’, como ‘A Peste’, fala do homem, da invencível incompatibilidade do homem consigo e com os outros.

Para demonstrar que a guerra é a insensatez, Coppola enfileira sequências de pleno nonsense, como a dos soldados surfando sob a metralha, a dos franceses encastelados numa ostentação que destoa da selva e do caos em volta, a do posto avançado onde ninguém sabe quem está no comando. Apresenta também personagens grotescos, como o comandante que adora o cheiro do napalm2 pela manhã. Mas essas sequências e personalidades se integram com tanta naturalidade no contexto em que estão, que essa coerência entre personagens/acontecimentos insanos e a insanidade do entorno confirma que o absurdo é da essência da guerra.

A pirotecnia dos fogos cruzados e explosões é explorada visualmente dando ao filme um ar psicodélico, harmonioso com a trilha sonora, e que tem um significado metafórico. Como o soldado Lance, que se droga e acha a guerra linda, a maioria dos espectadores, anestesiados pela apatia e alienação, também se distrai observando a superfície faiscante do filme, e nem percebe o horror que passeia diante dos seus olhos, seja no filme seja no dia-a-dia fora da sala de cinema. São os prisioneiros da caverna3, condenados a ver somente as sombras do real. Também o filme de Coppola, para quem quiser, pode ser visto apenas como um enredo sobre um soldado patriota que se embrenha na selva para matar um traidor. Mas abaixo da superfície do filme, a dimensão simbólica e metafórica está escancarada. Não é um filme sobre o clarão do napalm incinerando as matas, nem sobre o estrondo das bombas arrasando aldeias: trata de sombras e silêncio assolando os corações dos guerreiros.

O herói navega rio acima. É um ‘road movie’ aquático, um ‘river movie’. A fábula se organiza numa das estruturas-tipo mais tradicionais e bem-sucedidas do cinema, a da viagem, entendida no duplo sentido do termo: é uma viagem física e emocional; enquanto o protagonista percorre um itinerário físico pleno de dificuldades e imprevistos, sua alma se desloca de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. O tema da viagem é clássico na literatura e no cinema4, e o navegar, o viajar sobre a água, é ainda mais. Lembra a Odisséia, os argonautas, a arca de Noé, os Lusíadas. A água, o rio, o mar, na interpretação junguiana representa o inconsciente, o desconhecido, a incerteza, dúvida, indecisão5. E é muito eloquente o fato de navegar rio acima, contra a corrente, em direção à nascente, à fonte, à origem, ao princípio das coisas. É a jornada espiritual de um homem em direção ao ‘coração das trevas’, à sua fonte, à sua origem, à sua nascente, ao si-mesmo6.

Coppola mostra que quanto mais seu protagonista se aproxima do coração das trevas, mais se aprofunda no absurdo: ao longo do rio a disciplina se esgarça, afrouxa e enfim some, a sensação de ordem e o aparente sentido da guerra, visíveis no ponto de partida, vão se desintegrando, o cenário vai se tornando mais e mais caótico. No último posto avançado do seu exército, Willard descobre que não há ninguém liderando, não se sabe mais quem dirige, ele questiona e se questiona. Quando pergunta ‘Quem está no comando?’, respondem-lhe: ‘Não é você?’. Daquele ponto em diante, Willard se descobre no comando da sua vida: toda disciplina, toda ordem, toda lógica, se desintegraram. Mas ele segue em frente, e chega ao seu destino vazio de sentido. Só uma coisa o salva de se tornar mais um fanático nas hordas de Kurtz: ele se atribui uma missão, um sentido para o absurdo da sua jornada. E quando mais adiante ele vacila no seu propósito, e constata a falta de sentido da missão que se atribuiu, Kurtz o salva, dando-lhe uma nova missão, um novo sentido: o de relatar, o de narrar, apresentar o horror aos demais.

Alguns diálogos são repletos de significados ocultos ou simbólicos. No último contato com o mundo pelo correio, Chef acha graça na carta da sua Eva, que diz ter dificuldade para estabelecer um relacionamento com ele; o soldado compreende, e confessa que tem de lutar para estabelecer um relacionamento consigo mesmo. No fim da cena, a voz da mãe fala de amor para o filho morto, o que é também uma metáfora dessa e de outras obras de arte, registros que ecoam uma mensagem para ouvidos que não são capazes de escutar. As falas de Roxane valem por uma aula de filosofia: há dois de você, um que mata, outro que ama; você está vivo, isso é que importa; há soldados perdidos, cujos olhos viram o horror, os estragados, os desiludidos, os expulsos da caverna.

Kurtz, por fim, é um dos personagens maiúsculos do cinema. Está no centro do palco desde a primeira cena, impõe-se desde o começo como protagonista, embora sua imagem só apareça por uns poucos minutos no final. Quando fala do rio Ohio que desceu quando criança, a imagem dos cinco ou seis acres onde parece que o céu caiu sobre a terra em forma de begônias fala da infância perdida: aquelas begônias eram o Rosebud de Kurtz. É belo o contraponto entre a descida do rio, da nascente à foz, da origem ao destino, que Kurtz fez na infância, com o caminho de volta, que ele fez e Willard faz agora, o retorno rio acima, o trajeto da inocência à desilusão. E Kurtz, que sabe ser um renegado, que desertou do exército e da pátria, contudo guarda consigo a farda pendurada e limpa num cabide, a boina preta bem cuidada, as medalhas imaculadas numa caixa, junto com as fotos da mulher e do filho, a bíblia e a metralhadora, o livro de poemas e as cabeças cortadas dos inimigos, a lembrança do campo de begônias e a memória da pilha de bracinhos decepados. Ele não quer esquecer quem foi, não renega nenhuma parte de si mesmo, ele sabe que é o que mata e o que ama. Ele proclama: julgar é o que nos enfraquece, não devíamos julgar. Mas não pode escapar da condição humana: precisa julgar e julgar-se, precisa pensar sobre esse mosaico de vida e morte, amor e ódio, beleza e horror, porque a razão é o prêmio e o castigo do humano, é o braço de Hércules e o calcanhar de Aquiles.

Curioso que no começo da jornada vemos Willard partindo ao encontro da sua sombra, do seu nêmesis, do seu oposto. Mas ao longo da jornada iniciática Willard vai conhecendo, e nos apresentando, o horror, e vai se modificando, vai compreendendo a sua antítese, se identificando com ela, se transformando nela. Quando chega à foz, ele é o homem que perdeu a fé, perdeu as certezas, o norte, o homem que conheceu o horror, que deixou a caverna: na chegada, ele é quase-Kurtz. Depois passa por um típico ritual de iniciação7, que começa, simbolicamente, quando ele é virado e suspenso de ponta-cabeça8, e depois espojado na lama9; passa, a seguir, pelas privações, isolamento e provas físicas que caracterizam tantas iniciações indígenas; é encerrado numa câmara escura como um útero10, passa pela morte simbólica, e pelo simbólico renascimento11. O rito termina com um sacrifício mitraico12: enquanto os nativos abatem o touro, para absorver-lhe a força, Willard sacrifica Kurtz, e termina de absorver-lhe a essência13. Tese e antítese se identificam, fecham o círculo dialético e se tornam síntese: Willard transforma-se em Kurtz. Por isso é que, quando sai do templo, os devotos o reverenciam como líder. Assim como Kurtz, Willard também recebeu o tiro de diamante14 no meio da testa, e enxergou o deserto do real. Willard compartilha com Kurtz o sintoma que o fotógrafo menciona a certa altura: sua mente está totalmente lúcida, mas sua alma está doente. Contraiu, afinal, a doença do homem contemporâneo.

Mas ao final o protagonista iniciado, desiludido, arrancado da caverna, segue em frente como o herói do monomito15, que volta ao mundo renascido, transformado e levando seu elixir: larga a foice16 e leva consigo só os manuscritos de Kurtz. A história é sua arma, a partir desse ponto. Como escreveu Camus: tudo o que o homem pode ganhar no jogo da peste e da vida é o conhecimento e a memória. Willard transformado segue em frente com as memórias, dele e de Kurtz, que Coppola incorpora às nossas memórias, para transformar-nos.


——Notas e adendos:

1


Diegese: a dimensão ficcional de uma narrativa; a realidade própria da narrativa (“mundo ficcional”, “vida fictícia”), à parte da realidade externa de quem lê (o chamado “mundo real” ou “vida real”). O tempo diegético e o espaço diegético são, assim, o tempo e o espaço que decorrem ou existem dentro da trama. Algo é diegético quando ocorre dentro da ação narrativa ficcional do próprio filme. Por exemplo, uma música de trilha sonora incidental que acompanha uma cena faz parte do filme mas é externa à diegese, pois não está inserida no contexto da ação. Já a música que toca se um personagem está escutando rádio é diegética, pois está dentro do contexto ficcional.

2


“Napalm é um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, utilizados como armamento militar. O napalm é na realidade o agente espessante de tais líquidos, que quando misturado com gasolina a transforma num gel pegajoso e incendiário […]. O napalm foi desenvolvido em 1942 durante a Segunda Guerra Mundial nos Estados Unidos por uma equipe de químicos da Universidade Harvard […] O napalm foi usado em lança-chamas e bombas pelos Estados Unidos e nações aliadas, para aumentar a eficiência dos líquidos inflamáveis. A substância é formulada para queimar a uma taxa específica e aderir aos materiais. […] Diversos lançadores foram desenvolvidos para seu uso, culminando nas armas lança-chamas utilizadas contra os exércitos vietnamitas no fim da década de 1960" (fonte).

3


“O mito da caverna, também chamado de Alegoria da caverna, foi escrito pelo filósofo Platão, e encontra-se na obra intitulada A República (livro VII). Trata-se da exemplificação de como podemos nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade. […] Imaginemos um muro bem alto separando o mundo externo e uma caverna. Na caverna existe uma fresta por onde passa um feixe de luz exterior. No interior da caverna permanecem seres humanos, que nasceram e cresceram ali. Ficam de costas para a entrada, acorrentados, sem poder locomover-se, forçados a olhar somente a parede do fundo da caverna, onde são projetadas sombras de outros homens que, além do muro, mantêm acesa uma fogueira. Os prisioneiros julgam que essas sombras sejam a realidade. Um dos prisioneiros decide abandonar essa condição e fabrica um instrumento com o qual quebra os grilhões. Aos poucos vai se movendo e avança na direção do muro e o escala, com dificuldade enfrenta os obstáculos que encontra e sai da caverna, descobrindo não apenas que as sombras eram feitas por homens como eles, e mais além todo o mundo e a natureza” (fonte).

4


“Os lugares narrativos da fábula. Se a narrativa possui as suas estruturas-tipo, a fábula também se apresenta sob a forma de lugares narrativos bem reconhecíveis. […] na multiplicidade das construções narrativas, esconde se apenas um número limitado e repetido de situações dramáticas. À primeira vista, e a grosso modo, pensa-se que todo filme conta uma história diferente. Daí vem a necessidade de se aplacar esta impressão de multiplicidade – uma ilusão! – através de um mecanismo redutor que faça esclarecer os arquétipos do gênero fabulístico. Com maior frequência, quatro são os mais utilizados lugares narrativos na fábula: a viagem, a educação sentimental, a investigação, e o elemento deflagrador. (1) A viagem. É o topos – configurações que o material narrável adota no plano da dispositio – que ostenta os mais ilustres precedentes, a começar pela Odisséia, de Homero, até On the road, de Jack Kerouac. É também o mais congenial ao cinema que sempre mostrou uma predileção particular por histórias tendo por tema a descrição de um itinerário físico durante o qual, entre mil dificuldades e imprevistos, o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento. Ou, como se pode também dizer: do pecado à salvação. A viagem é pontuada por etapas que se constituem em estações de um percurso interior que conduz do Erro inicial à Verdade final. É isso que se vê, por exemplo, em O Sétimo selo […], Paisagem sob a neblina, do grego Theo Angelopoulos […], Quando é preciso ser homem/The soldier blue, 71, de Ralph Nelson […]”. Fragmento do curso de cinema de André Setaro.

5


Campbell, Joseph & Moyers, Bill. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990, p.155. O oceano simboliza o inconsciente, o desconhecido. O mar também simboliza incerteza, dúvida, indecisão, e simboliza o coração humano, lugar das paixões [Chevalier, Dicionário de símbolos, Ed. José Olympio, p.592-3]; simboliza o caos primordial e a essência divina [Chevalier, p.650].

6


O self é o símbolo da totalidade psíquica, o núcleo mais profundo da psique. Símbolos do Self para o homem um iniciador masculino, guru, guardião, velho sábio, Merlin, Hermes. O grande homem interior age como um redentor que tira o inconsciente do mundo e dos seus sofrimentos para levá-lo de volta à sua esfera original eterna. É o alvo final da vida. O objetivo principal do homem não é comer, beber, etc., mas ser humano. A orientação extrovertida do ego em direção ao mundo exterior há de desaparecer para dar lugar ao homem cósmico. Isso acontece quando o ego se incorpora ao Self. O fluxo discursivo das representações do ego (que vai de um pensamento a outro) e de seus desejos (que correm de um objeto a outro) acalmam-se quando é encontrado o grande homem interior [Jung et allii. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 2000, p.196-210, passim].

7


O ritual de iniciação envolve sempre uma morte simbólica (identidade temporariamente destruída ou dissolvida no inconsciente coletivo) e um salvamento solene pelo renascimento. Entre os jovens o tema mais comum é a prova de força. Na iniciação rompem-se os laços com o mundo infantil. O objetivo fundamental da iniciação é domar a turbulência da natureza jovem. A iniciação tem propósito civilizador (espiritual). Há uma ambivalência, conflito entre aventura e disciplina, mal e virtude, liberdade e segurança. A iniciação envolve um rito de submissão, depois um período de contenção e depois um de libertação. Alguns homens precisam ser provocados, sua iniciação tem a violência do rito de trovão dionisíaco. Outros tem de ser dominados, e a submissão vem da organizada planificação dos templos, religião apolínea. Uma iniciação completa abrange os dois temas. Outro tipo de simbolismo refere-se à libertação do homem (ou sua transcendência) de uma forma restritiva de vida para progredir a um estágio superior mais amadurecido de sua evolução. Símbolo mais freqüente de transcendência/libertação é o tema da jornada solitária ou peregrinação, onde o iniciado descobre a natureza da morte. No rito da iniciação o noviço tem de renunciar a toda ambição, aceitar a morte, fazer a prova sem esperar sucesso. Geralmente a iniciação é guiada por um xamã, representação do herói mítico Trickster (Joseph L. Henderson, Os mitos antigos e o homem moderno, in Jung et allii. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 2000, pp. 135-160, passim).

8


A imagem é eloquente como efeito cinematográfico, porque indica visualmente o instante em que o mundo de Willard vira de cabeça para baixo. Mas sua figura, segura no ar de ponta-cabeça, faz imediatamente lembrar do 12º arcano maior do tarô, o Enforcado, que mostra exatamente um homem suspenso, preso pelo pé e com a cabeça apontada em direção à terra. Sobre o simbolismo do Enforcado ensina Chevalier que esse arcano tem origem e derivação de outros dois, o Diabo e o Eremita. A figura de Kurtz, que é a causa de Willard chegar ao ponto em que está, lembra a de um eremita, pois desertou e se escondeu no coração da selva, onde se tornou uma espécie de guru pagão. E a feiúra da guerra que o filme mostra é, seguramente, diabólica. O Enforcado, ensina ainda Chevalier, representa a escravidão psíquica e o despertar liberador, os remorsos, as prisões de toda espécie, o desejo de se libertar de um jugo; simboliza todo homem que, absorvido por uma paixão, sujeito de corpo e alma à tirania de uma idéia ou de um sentimento, não tem consciência da sua escravidão. E conclui: o Enforcado marca bem o final de um ciclo, o homem se invertendo para enfiar a cabeça na terra para restituir o seu ser pensante à terra da qual foi moldado, é o arcano da restituição final, que é a condição da regeneração (Chevalier, Dicionário de símbolos, Ed. José Olympio, p.370-1).

9


A lama é símbolo da matéria primordial e fecunda da qual o homem foi tirado, segundo a tradição bíblica. Mistura de terra e água, a lama une o princípio receptivo e matricial (a terra) ao princípio dinâmico da mutação e das transformações (a água). Entre a terra vivificada pela água e a água poluída pela terra, escalonam-se todos os níveis do simbolismo cósmico e moral (Chevalier, Dicionário de símbolos, Ed. José Olympio, p.533-4).

10


Todos os rituais comportam processos particulares de morte iniciática. O candidato pode ser posto numa cova cavada ad hoc para ele. O neófito parece operar um processo de regressão, seu novo nascimento é comparado ao retorno ao estado fetal no ventre de uma mãe (Chevalier, Dicionário de símbolos, Ed. José Olympio, p.506).

11


Iniciar é, de certo modo, fazer morrer, provocar a morte. Mas a morte é considerada uma saída, a passagem de uma porta que dá acesso a outro lugar. À saída, então, corresponde uma entrada. O iniciado transpõe a cortina de fogo que separa o profano do sagrado, e sofre, com esse fato, uma transformação, muda de nível, torna-se diferente (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. 22a. ed., Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2008, p.506).

12


O culto de Mitra, que surgiu na Pérsia, propagou-se na Grécia e ali Mitra foi reverenciado como símbolo do triunfo do bem sobre o mal. Era venerado perto de nascentes ou cursos de água, indispensáveis para a purificação (Arcangeli, Alessandro, et allii. História das religiões. Trad: Carlos Nougué. Barcelona: Ediciones Folio, 2008, ISBN 978-84-413-2488-6, p. 95). No filme, o local do encontro de Willard e Kurtz, e do sacrifício aqui mencionado, é a nascente do rio. “O ritual de iniciação nos mistérios de Mitra era o taurobólio, que consistia em um ritual de sacrifício do touro. Sobre uma forte estrutura em forma de rede entrelaçada de aço ou ferro, era imolado um touro pelos sacrificadores, e seu sangue escorria sobre o iniciado que ficava abaixo desta estrutura, nu, em uma fossa cavada ao chão. Aí, recebia o sangue, piedosamente, sobre a cabeça e banhava com ele todo seu corpo. O iniciando abria a boca para beber avidamente o sangue. […] A festa continuava após a imolação do touro”. “O matar o touro constitui o motivo principal do culto mitraico. […] Sacrificado o touro, tem lugar um banquete. Sua carne é consumida e seu sangue, bebido […]. Acreditava-se que, através da consumação da carne e do sangue do touro, o adepto buscava o nascimento para uma nova vida. A carne e o sangue conferem não somente força corporal, mas também são salutares para a alma e benéficas ao renascimento na luz eterna”. “As sucessivas conquistas dos césares foram a principal causa da difusão da religião mitraica no mundo latino. Por volta de 70 a.C., o mitraísmo penetrou em Roma. Começou a espalhar-se sob o império dos flavianos e no tempo dos antoninos e severos desenvolveu-se enormemente. […] Devido ao seu caráter de força e beligerância, Mitra obteve a maioria de seus adeptos no Exército Romano. A todos que se engajavam sob as águias romanas, o deus podia prestar seu apoio. A assistência no campo de batalha e a disciplina militar que ele exigia foram importantes na propagação do culto de Mitra e seu reconhecimento oficial. Mitra era o protetor e patrono das armas”. Marília Teresa Bandeira de Melo, Mitra, mitraísmo: o sacrifício do touro, aqui.

13


O sacrifício é a idéia central das cosmogonias. Não há criação sem sacrifício. Sacrificar o que se estima é sacrificar-se. a energia espiritual que se obtém com isto é proporcional à importância da perda (Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Editora Moraes, 1984, p.507).

14


Segundo a psicologia analítica pedras preciosas são frequentemente símbolos do self (M. L. von Franz. O Processo de Individuação. In: Jung et allii. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro : Ed. Nova Fronteira, 2000, p.208). Vide nota 6 acima. No filme, Kurtz recebe o tiro de diamante no centro da testa quando percebe o que pensa ser a natureza do inimigo. O diamante aparece nos emblemas como centro místico irradiante, um símbolo dos conhecimentos morais e intelectuais, do coroamento de um processo construtivo (Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Editora Moraes, 1984, p. 209). Essa claridade no centro da testa faz lembrar imediatamente o terceiro olho, o olho de Xiva, da sabedoria, do Dharma, do coração, da alma. Enquanto o olho direito corresponde ao sol e à visão da atividade e do futuro, o esquerdo representa a lua, a passividade, a visão do passado, o terceiro olho corresponde ao fogo, e seu olhar reduz tudo a cinzas, porque exprime o presente sem dimensões, permitindo que as coisas sejam apreendidas simultaneamente, criando a percepção unitiva, a visão sintética (Chevalier, Jean & Gheerbrant, Alain. Dicionário de símbolos. 22ª ed., Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 2008, p.654).

15


O antropólogo e ensaísta estadunidense Joseph Campbell é um dos maiores responsáveis pela divulgação da narratologia, com suas obras “A Jornada do Herói”, “O Herói de Mil Faces”, “O Poder do Mito” e o conceito de monomito (adaptado de James Joyce), segundo o qual todos os grandes mitos-fundadores das culturas humanas seriam, em última análise, um só. Para Campbell, a imensa maioria dos mitos trabalha com heróis arquetípicos Esta abordagem estende uma visão estruturalista das narrativas, procurando nelas determinados paradigmas e estruturas que se repetem, a despeito de contextos culturais e históricos. Ele se baseou nas idéias de Carl Jung sobre o simbolismo na interpretação dos sonhos e na pesquisa de Wilhelm Stekel sobre a aplicação de temas do imaginário e do inconsciente humano à ficção (em literatura, teatro e cinema). O etnógrafo Franz Boas e o antropólogo Leo Frobenius também influenciaram a visão de história cultural do pesquisador. Em breve resumo as etapas características da jornada do herói são: 1. Mundo Comum – O mundo normal do herói antes da história começar. 2. O Chamado da Aventura – Um problema se apresenta ao herói: um desafio ou a aventura. 3. Reticência do Herói ou Recusa do Chamado – O herói recusa ou demora a aceitar o desafio ou aventura, geralmente porque tem medo. 4. Encontro com o mentor ou Ajuda Sobrenatural – O herói encontra um mentor que o faz aceitar o chamado e o informa e treina para sua aventura. 5. Cruzamento do Primeiro Portal – O herói abandona o mundo comum para entrar no mundo especial ou mágico. 6. Provações, aliados e inimigos ou A Barriga da Baleia – O herói enfrenta testes, encontra aliados e enfrenta inimigos, de forma que aprende as regras do mundo especial. 7. Aproximação – O herói tem êxitos durante as provações. 8. Provação difícil ou traumática – A maior crise da aventura, de vida ou morte. 9. Recompensa – O herói enfrentou a morte, se sobrepõe ao seu medo e agora ganha uma recompensa (o elixir). 10. O Caminho de Volta – O herói deve voltar para o mundo comum. 11. Ressurreição do Herói – Outro teste no qual o herói enfrenta a morte, e deve usar tudo que foi aprendido. 12. Regresso com o Elixir – O herói volta para casa com o “elixir”, e o usa para ajudar todos no mundo comum. Vide, a respeito: Campbell, Joseph & Moyers, Bill. O poder do mito. Trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.

16


A foice é atributo de Saturno e das alegorias da morte. A foice é também símbolo da colheita, da nova esperança de renascimento, da dualidade do princípio como fim e vice-versa (Cirlot, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. São Paulo: Editora Moraes, 1984, p. 260).


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