O Show de Truman é entretenimento de alta categoria. Além disso, parece ser uma rara crítica à indústria cultural, partida de dentro dela mesma. Tudo no filme é bem feito, bem pensado, bem montado, inclusive a condução eficiente da emoção do espectador, que se identifica com o protagonista, torce por ele e se empolga até às lágrimas com o final meticulosamente desenhado segundo o melhor figurino do cinema de Hollywood.
O Show de Truman é perfeito. E esse é o problema.
Freud escreveu que o reino da imaginação é um santuário construído durante a penosa transição do princípio do prazer para o da realidade. O artista, como o neurótico, sai da realidade insatisfatória e penetra no mundo da imaginação, mas sabe como voltar à realidade. A expressão artística é uma psicose temporária e controlada, onde o artista realiza a satisfação imaginária de seus desejos inconscientes, tal como nos sonhos. Mas a arte difere dos sonhos porque evoca no espectador, e lhe satisfaz, os mesmos desejos inconscientes. E Martin Feijó explica que na nossa cultura a iniciação se dá por transferência de emoções, através da arte. Os ritos iniciáticos das sociedades primitivas deixaram de ser espontâneos e passaram a ser encenados, primeiro no teatro, agora também no cinema, onde são apresentados a um público passivo, que se envolve emocionalmente na obra de ficção e dela obtém a sua catarse, pela identificação profunda com o destino do herói.
É o que ocorre, aqui. O Show de Truman é uma falsa crítica ao modelo da indústria cultural e à dominação das mentes pela mídia. O filme é tão eficiente em estabelecer vínculos entre o espectador, previamente desarmado pela “honestidade” de uma obra “contestadora”, e o simpático Truman/Carrey, que a redenção final do herói ficcional basta para satisfazer imaginariamente o desejo de libertação do espectador. O público foge com Truman, enfrenta a tempestade na pele de Truman, morre simbolicamente e retorna das águas junto com o herói, e quando Jim Carrey se despede desejando bom dia, boa tarde e boa noite pela última vez, o espectador se sente liberto, passando com ele pela porta para o mundo dos despertos.
Só que Truman sai do domo iluminado para o escuro de um mundo novo (coincidentemente seu barco se chama Santa Maria, como a capitânea de Colombo), e o espectador sai da sala escura para o mundo que já conhece, e que se parece muito com Seahaven, um mundo onde ele desempenha sem perceber papéis que não escreveu. Poucos dos espectadores são capazes de arrastar a sua identificação com Truman para fora da sala de cinema, ou de cogitar repetir a jornada do herói que se recusa a representar papéis e a agir conforme a audiência espera. O filme é um produto tão solidamente construído que a libertação de Truman parece suficiente, já forneceu ao espectador alívio bastante: o espectador não precisa da emoção da auto-libertação, porque a emoção causada pela libertação ficcional do herói é um substitutivo eficiente. É que a libertação do herói é falsa, é encenada, é ficção, mas a emoção do espectador foi verdadeira. É por isso que a catarse funciona: o espectador se sente vingado pelo personagem, e pode continuar ocupando mansamente seu lugar no rebanho.
Mas o filme não é desonesto, não tenta camuflar sua natureza de paliativo anestésico para o consumidor massificado que o assiste. Ao contrário — e nisso reside a qualidade do filme —, Peter Weir deixa claro ao espectador que o está manipulando, e mais: mostra como o faz. O ponto alto do filme consiste em comparar a cena em que Christof rege como um maestro, ou titereiro, o reencontro de Truman e seu pai, levando às lágrimas os espectadores “de dentro” do filme, com a cena final em que Weir rege a fuga de Truman para levar às lágrimas, com as mesmas técnicas de Christof, os espectadores “de fora”. Que caem naqueles mesmos truques, minutos depois de eles terem sido desvelados, desmistificados, denunciados pelo próprio filme. Isoladas, as duas cenas são triviais; lado a lado, no mesmo filme, constituem um lance de atrevimento de Weir, e um momento maiúsculo do metacinema, do cinema que fala de cinema, que o desvenda e discute. Sem alarde, sem didatismo, sem que a maioria sequer perceba, Weir prova aí sua tese: os espectadores de fora da tela são tão ingênuos, manipuláveis e alienados quanto os fãs estereotipados que aparecem pateticamente na tela.
Tive a felicidade de assistir O Show de Truman na TV, o que me permitiu uma experiência que não poderia ter no cinema: a de ver os outros espectadores, no início da rolagem dos créditos finais, repetirem sem se dar conta o gesto dos dois personagens abobados que, na última cena, diante do final da epopéia de Truman, só conseguem pensar numa atitude: mudar de canal. O que mostra que a mensagem de Weir (que gosta de fazer filmes com uma moral bem evidente, como “Sociedade dos Poetas Mortos”) se não é compreendida, é pelo menos confirmada pela maioria. Essa maioria que prefere não pensar sobre o que vê na tela, e consome cinema, TV, jornal, revista e todas as mídias como diversão, naqueles dois primeiros sentidos que o Houaiss registra para o verbo divertir: desviar, distrair a atenção de alguém, ou a própria, de algo; fazer esquecer. Pascal escreveu há 400 anos: “diversão: não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo”.
Weir, neste Show de Truman, faz cinema padrão Hollywood, cinema-diversão, cinema-entorpecente, mas contrabandeia subversivamente para dentro do produto ingredientes capazes de provocar efeitos colaterais em alguns espíritos sensíveis. Aqueles poucos que, além de — ou em vez de — se identificar com Truman, percebem sua identidade com os espectadores-personagens entorpecidos que, não tendo uma vida própria para viver, consomem a vida alheia pelo vídeo e preenchem o vazio do seu tédio com as emoções do herói da TV. Como escreveu Richard Wagner, “Se tivéssemos uma verdadeira vida não teríamos necessidade de arte. A arte começa precisamente onde cessa a vida real, onde não há mais nada à nossa frente. Será que a arte não é mais do que uma confissão da nossa impotência?”.
Para os que conseguiram ver o próprio rosto entre os personagens-espectadores O Show de Truman pode ter o efeito daquele holofote que cai inesperadamente do céu numa cena do filme: um sinal de que algo está errado, algo precisa ser investigado; pode provocar aquele comichão que Truman confessa ter sentido em certa altura da vida, e que é uma doença sem cura, a da desilusão, a da perda da inocência. Weir pretende é contagiar alguns com a maldição de Truman, a maldição do homem que descobre ser personagem numa farsa.
O Show de Truman evoca Matrix, porque, assim como Matrix, é uma alegoria moderna do mito da caverna de Platão. Como Neo, Truman tomou a pílula vermelha, e já não pode retornar ao mundo dos sonhos, já não pode voltar a crer que as sombras no fundo da caverna são a realidade. Quando escapa do seu porão, deixando em seu lugar um boneco que parece uma simbólica casca abandonada, Truman já não tem a possibilidade da volta. Inge escreveu: “quem come da árvore do conhecimento sempre acaba expulso de algum paraíso”. Truman, expulso do paraíso da ignorância, só podia seguir em frente em direção à verdade. Ainda que a verdade fosse esta: que o céu não passa de uma parede pintada, que o mundo fora da TV é igual ao mundo dentro dela: farsa, representação, mistificação.