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José Saramago

O evangelho segundo Jesus Cristo

1. Evangelho significa “boa novaâ€. Não acho que Saramago, sendo quem é, usaria a palavra à toa. Resta descobrir – e parece difícil – qual é a boa nova contida no livro.

Talvez – é uma idéia – a boa nova seja que deus não tem poder para obrigar o homem a sacrificar a ovelha, sacrifício que simbolicamente significa a renúncia ao próprio estatuto de dignidade e liberdade em reverência às forças do além.

Ou que “o Bem e o Mal não existem em si mesmos, cada um deles é somente a ausência do outroâ€.
Hoje me parece, pensando melhor, que a boa nova é a conclusão do n.5 abaixo.
Vide também n. 6 infra.

2. Chama a atenção, neste e nos outros livros do autor, a consideração que tem para com as mulheres. Nos seus livros há homens bons e maus, mas principalmente maus. Já as mulheres, quase sempre, encarnam os bons sentimentos e as melhores qualidades.

Neste livro, além das boas qualidades mais evidentes de Maria, aparece, ou transparece, uma, dela e das outras, que é a desconfiar de Deus e da religião. Isso aparece quando os homens louvam em voz alta, e elas o fazem murmurando, sem esperar ser ouvidas. Dá a entender que o muito sofrer para servir ao senhor terreno, o marido, ensinou-as a também não esperar tratamento melhor de um senhor metafísico.

3. É um livro de ateu, da espécie do ateu magoado, que não perdoa a Deus pelas misérias do homem. Mas o livro trata Jesus com respeito, piedade até. Aquela piedade que Saramago sempre demonstra pelo homem, uma solidariedade empática, até pelos personagens caídos. Deve ser porque, para ele, Jesus era só homem, e por isso merecedor da piedade, ao contrário de Deus.

4. Curioso como neste, e no outro livro que narra coisas de passado remoto (o “Cerco de Lisboaâ€), Saramago não cuida de reconstituir detalhes do ambiente,vestuário, costumes, etc., que ajudassem a compor uma atmosfera “históricaâ€. Dá a impressão, provavelmente intencional, de que para as pessoas pobres, de que trata, o mundo e a vida foram sempre iguais, antes e agora, e descrever o cotidiano daqueles pobres de dois mil anos atrás não difere de descrever o dos de hoje.

Aliás, nota-se, vendo os livros ‘localizados’ (como o Evangelho, o Levantado do Chão, o Cerco de Lisboa) e aqueles cujo enredo se passa em lugar neutro, que pode ser qualquer país (como Todos os Nomes, Ensaio sobre a Cegueira e Ensaio sobre a Lucidez) a mesma impressão: todos os lugares são iguais, todos os lugares são o mesmo lugar.

No universo de Saramago, onde o assunto é sempre o homem, todo dia é hoje, todo lugar é aqui.

5. Os pecados de Herodes (dos ‘maus’) são mais facilmente perdoados que o de José (dos “bonsâ€). Porque? Porque é a consciência quem castiga, e os maus não a têm.

Noutra passagem, quando imagina que Jesus poderia dizer a José que ele não carrega a culpa sozinho, o autor indica que é a crença religiosa que faz José assumir a culpa que não é dele, e sim de Deus.

Mais adiante afirma que Deus não dorme, porque sua culpa é maior que a de José.

Parece que a moral da história, conforme Saramago, está nisto: a punição do pecado é a culpa, lobo que devora o pai e depois o filho. O homem que se considera bom tem a consciência carregada de culpa, razão porque não pode deixar de se achar destinatário da mensagem “Arrependei-vosâ€. A consciência, por meio da culpa, o atormenta, e esse é seu castigo. O homem “mauâ€, ou pelo menos aquele que não pretende ser bom, está livre do clamor da culpa. Ele não tem consciência, por isso está livre de castigo.

6. A autoria do evangelho é atribuída a Jesus. O que indica (gênios não usam expressões assim à toa) que o narrador é o protagonista, e devia narrar em primeira pessoa. Mas parece que não é assim, o narrador se coloca como terceira pessoa. Como explicar?

7. Li sobre o caso de Jó, em outra parte. No Evangelho ele também aparece. Foi objeto de um jogo, uma aposta entre deus e diabo. Parece que para Saramago Jesus é objeto de um jogo similar.

8. Os protagonistas de Saramago são sempre pessoas que sofrem. Em todos os livros a trajetória dos protagonistas é dramática, e raramente há salvação para eles. Mas alguns são premiados com o gozo de uma felicidade amorosa, ainda que passageira. Para Saramago, parece, a única salvação que pode existir, ainda que transitória, é a do amor entre homem e mulher.

9. Ainda que seja obra de autor ateu, e talvez por isso mesmo, é um livro de fé, mas fé na humanidade. O sagrado é o humano, e o humano é sagrado. Talvez seja essa, enfim, a boa nova. O único paraíso possível é aqui, como adverte o crânio de Adão no primeiro capítulo.

10. O deus que aparece no livro não é o ser supremo, criador do universo, em que o autor, ateu, não crê. É o deus-ideologia e produto, criado pelo homem e construído por uma certa doutrina religiosa. O deus que fala no livro é o deus-instituição, é a igreja católica falando, no livro, como se fosse deus.


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