LITERATURA | RESENHA
Memórias de Adriano
Um homem comum colocado num papel grandioso torna-se um homem grandioso?
11 maio 2008 | comente
Não estamos mais acostumados a matar. Nossos avós matavam animais para comer, tinham consciência presente de que a vida provém da morte, de que nossa vida é mantida graças à morte de outros seres. Nós não matamos, compramos a carne na loja já beneficiada, nem lembra o bicho a que pertenceu, não parece um cadáver.
Assim, a morte, para nós, é tabu: perdemos a consciência de que comer é matar, viver é matar, morte e vida são partes do mesmo ciclo natural.
A respeito disso ensina Campbell:
Os primeiros homens perceberam o mundo sobrenatural, para onde os animais caçados pareciam ir quando morriam. Um ‘senhor dos animais’ mandava de volta as feras para tornarem a ser caçadas. A essência da vida subsiste graças ao matar e comer. Esse é o grande mistério que os mitos têm de enfrentar. A caça tornou-se um ritual de sacrifício, de expiação diante dos espíritos dos animais mortos, para coagi-los a retornar, para serem sacrificados de novo. Havia um mágico acordo entre caçador e caça. (...) Se hoje damos graças a deus pelo alimento, antes de comer, isso é resquício da mitologia primitiva quando as pessoas agradeciam ao animal, que estava prestes a ser comido, por ter-se doado em sacrifício. Nos upanixades uma prece diz: “oh maravilhoso, eu sou alimento, eu sou comedor de alimento”. Hoje não pensamos assim, não nos consideramos alimento, mas isso representa interromper o fluxo, e a liberação do fluxo é a grande experiência do mistério. (...) Quando passaram da caça ao plantio, as histórias mudaram. A semente se tornou símbolo mágico do ciclo infinito. A planta morria, era enterrada e sua semente renascia. A semente foi incorporada como símbolo pelas religiões: a vida provém da morte e a bem-aventurança do sacrifício. (O Poder do Mito, p. 183 e seguintes, passim).
Os trechos das Memórias de Adriano que evocavam o sacrifício de animais para honrar deuses, e o sacrifício de homens para obter e manter o poder, territórios, cidades, posições estratégicas e mais poder, frisam a naturalidade com que a gente antiga encarava a morte. Adriano manda seu cunhado e antagonista suicidar-se, e este obedece; decretar a morte do opositor era natural no jogo político daquele momento, como hoje em dia a corrupção parece ser natural nesse mesmo jogo. Adriano era um pacifista, sonhava com um império pacificado. Para alcançar esse fim não titubeou em usar os meios mais cruéis. Com naturalidade, sem paixão nem compaixão, friamente.
Guerrear, invadir, matar milhares, pilhar, subjugar, eram expedientes tétricos que na visão do estadista asseguravam para seu povo sobrevivência, paz e prosperidade. Pensava ser seu papel como governante fazer girar a roda do destino, que eleva uns e esmaga outros. Cabia a ele manter em atividade o fluxo de morte gerando vida que gera mais morte.
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A Vila Adriana era um mini-mundo, um recordatório milionário, uma coleção dos lugares preferidos do imperador, um imenso museu habitável, um parque de diversões temático e megalomaníaco da cultura helenística e egípcia. Lembrou-me o Xanadu do cidadão Kane. E me deu a impressão de que, no fim da sua experiência de homem e governante, Adriano concluiu que o mundo real não era satisfatório, nao servia, e tentou criar um outro, só seu, uma terra do nunca, um mundo de fantasia isolado do mundo real, uma bolha de ilusão para se refugiar. Adriano teve por vinte anos um império inteiro em suas mãos. Não bastou. No fim da vida, precisou criar um outro reino, à sua imagem e semelhança, e esconder-se lá.
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O Panteão de Roma, edificado no governo de Adriano
O Panteão de Roma é um exemplo majestoso de geometria sagrada e simbólica. Se Adriano realmente interferiu no desenho da planta, como o livro sugere, então era um grande iniciado. A parte inferior da planta é um meio-cubo, cujo traçado pode ser imaginado continuando além do seu limite superior, onde começa um semicírculo de idêntica altura. As duas figuras, o semicírculo de cima e o quadrado de baixo, podem ser imaginados se completando na extremidade oposta. Há ali uma esfera perfeita, inserida dentro de um cubo perfeito. Um círculo e um quadrado, dois símbolos universais e imemoriais do universo, da totalidade, da completude. Duas mandalas. Evoca a quadratura do círculo, de que falavam os alquimistas.
O quadrado representa o estático, o firme, o terrestre, o feminino, o telúrico, o yin (Cirlot, p.481), enquanto o círculo simboliza o movimento, o dinâmico, o céu, o masculino, o yang (idem, p.163). O círculo representa a psique, e o quadrado o corpo (Jaffé, in Jung, o Homem e seus símbolos, p.249). O majestoso Panteão não é só o encontro de todos os deuses, representantes de todas as forças da natureza que o homem aprendeu institinvamente a respeitar: é também a união do céu e da terra, do corpo e da alma, do masculino e do feminino. Diz Robert Lawlor:
O quadrado representa a terra, abarcada num quádruplo abraço pela abóbada circular do céu e, portanto, submetida à roda do tempo em constante movimento. Quando o incessante movimento do universo, representado pelo círculo, dá passagem à ordem compreensível, surge o quadrado. O quadrado pressupõe por isto o círculo e é resultado deste. A relação entre forma e movimento, espaço e tempo, é evocada na mandala. (Geometria Sagrada, p.16).
Na linha central da esfera ficavam os deuses, os romanos e os estrangeiros. Como estavam todos na mesma linha, correspondente à circunferência, nenhum deles ficava acima do outro, ou mais perto do centro. E os sete altares principais honravam os sete planetas então conhecidos.
O interior do Panteão que Adriano mandou construir em Roma, com linhas destacando os traçados de geometria sagrada encontrados ali.
Do lado de fora, dezesseis colunas sustentando o frontão. As colunas têm 14 metros de altura, a porta principal 7 metros. Os romanos não usavam nosso sistema métrico, mediam em pés. Cada pé romano media 43 centímetros aproximadamente. A porta teria, então, 16 pés, e cada coluna 32 pés. 16 e 32, múltiplos de 4 e de 8. O 4 e seus múltiplos são, segundo Jung, símbolos do arquétipo da totalidade, o self, assim como o círculo e o quadrado.
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Busto do imperador Adriano O que o livro me mostrou de mais intrigante é que Adriano tinha tudo o que o homem comum pode cobiçar: era forte, sadio, belo, viril, inteligente e culto, escandalosamente rico, absolutamente poderoso, respeitado e até amado pelo seu povo. Mas tudo isso não foi o bastante para torná-lo feliz por um tempo relevante. Teve de suportar as mesmas misérias que machucam outros desprovidos de todos os seus dotes. Tardou a conhecer o amor, perdeu-o precoce e tragicamente, remoeu a culpa, conheceu a solidão e a ingratidão, viu seus projetos desmoronarem, envelheceu, adoeceu, conheceu a impotência do homem comum diante do rigor da condição humana.
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Foi talvez por isso que o livro me decepcionou desde o começo. Adriano aparece ali como um homem, um homem comum. Não há nada de heróico na sua figura humana. Foi colocado na posição de homem mais poderoso do seu mundo e do seu tempo, mas embora o papel fosse grandioso, o ator era apenas um ser comum. Não estava livre dos vícios e fraquezas de qualquer outro homem. Seus muitos talentos não o tornavam sobre-humano nem o libertavam das muitas frustrações que a vida real impõe equanimemente a todos.
Talvez seja essa, enfim, a mensagem da obra, o propósito da autora. Mostrar que o berço de ouro, a riqueza, a ilustração e a cultura, o poder e a popularidade, ou mesmo um destino grandioso, não fazem do seu titular alguém melhor. Como Adriano, sendo apenas um homem, ostentou com dignidade o seu papel de destaque no cenário do seu mundo, talvez caiba ao homem comum desempenhar também dignamente seu papel de figurante na história do seu tempo.
Fiquei pensando, depois, que a própria autora, educada em casa, aprendendo latim aos 8, grego aos 11 anos, seria uma personagem mais interessante que Adriano.
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Adriano encarnava em si o ideal grego do homem completo, artista, político, atleta e guerreiro. Não esquecer, todavia, que esse ideal era para o homem de posses. O que tinha de trabalhar para ganhar o sustento provavelmente não tinha tempo e energia para voos tão altos.
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Com tudo isso, não consegui escapar de achar o livro cansativo e longo demais.
São inegáveis, é evidente, o engenho e o talento narrativo de Marguerite Yourcenar. Um escritor menos dotado não teria conseguido escrever uma obra assim, corajosa na concepção e na execução: tratava-se de reconstruir uma vida sobre a qual poucos documentos existem, e a autora escolheu fazê-lo na forma de uma carta de 300 páginas, sem nenhum diálogo. Nas mãos de outro, talvez o resultado fosse monstruoso. Mas Yourcenar o fez com elegância, abundância de recursos narrativos, imagens ricas e pensamentos profundos. O defeito, talvez, é que o leitor a todo tempo se recorda de que a bela filosofia de vida e visão de mundo que o livro expõe não é de Adriano, é de Marguerite. A fala sobre as diferentes expressões da escravidão, no passado e no futuro, por exemplo, é arguta e precisa. Mas é pouco provável que Adriano, no seu tempo, tivesse essa visão. Não é a visão prospectiva de Adriano, mas a visão retrospectiva de Marguerite que aparece.
De modo que o leitor fica encantado com a acurada análise que o livro faz do mundo e dos homens, mas fica sempre com a impressão de estar sendo logrado, de ter lido não as memórias de Adriano, mas as de Marguerite.
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