Notas e comentários
[1]: Não sempre. Há dois trechos em que o narrador descreve fatos que o protagonista não viu (uma conversa entre a mãe e Dante no cap. 2, e outra entre donos de academia no cap. 3); e um, na 2ª parte do cap. 10, em que o narrador é onisciente mesmo, porque descreve fatos que ocorrem em toda a cidade, e sentimentos que não são do protagonista. A menos que não seja isso.
Porque esse trecho se passa num daqueles momentos em que o protagonista, nadando, mergulha no mar e mergulha em si também, e se ausenta do próprio Eu para fundir-se com o mar e o mundo. Em mais de um trecho ele relata essa sensação, esse é o seu rito religioso, a sua forma de meditação: correr, ou pedalar, ou nadar, "até que a sensação constante de ser uma pessoa se dissolva naturalmente pelo esforço físico extremo e pela conversão de todo o seu pensamento em passadas, braçadas, pulmão, coração". Para ele nadar não é um esporte, "nadar é uma relação especial com o mundo" (cap. 5). No começo do cap. 4 ele já estava tão ligado à cidade que conseguia adivinhar o clima subconscientemente. Talvez no cap. 10 ele já consiga dissolver o eu na água e participar da mente coletiva da cidade, e por isso descreve o que acontece e o que se pensa lá longe.
[2]: O protagonista só conhece um escritor, e o conhece bem demais. Esse escritor também conhece bem o cineasta que foi a Garopaba fazer o levantamento dos fatos sobre a morte do Sem-Nome 2. Esse escritor jurou que nunca escreveria sobre o Sem-Nome 2 (cap. 5), mas na opinião do protagonista se trata de um sujeito sem ética que se apropria inescrupulosamente da vida dos outros para fazer ficção (cap. 13), e seria capaz de escrever até sobre uma tragédia pessoal de alguém querido (cap. 1). E, ademais, a única pessoa viva que poderia se constranger com a narrativa, a esta altura, já tinha autorizado o escritor a contar a história (cap. 5). Esse escritor tem nome de poeta, e de um capaz de descrever uma jornada que atravessa inferno, purgatório e paraíso (não necessariamente nessa ordem). Logo, acho que temos um suspeito.
Reconheço, porém, que não é impossível que o próprio Sem-Nome 2 seja o narrador. As pistas estariam no cap. 4 (onde ele faz um estranho questionamento a Bonobo, sobre se seria ético alguém publicar um livro que um morto deixou escrito; a conclusão é pela inocência de quem o fizesse) e nas últimas linhas do cap. 12, onde ele faz essa curiosa digressão acerca do seu sonho recorrente (que é uma alegoria da sua relação com Viviana): "Imaginou variações consecutivas dessa história por anos a fio. Em todas ele terminava sozinho. Nunca lhe ocorreu contá-la a alguém, escrevê-la, desenhá-la. Por que essa história? Por que uma história? De onde tinha surgido e onde tinha ficado guardada todo esse tempo?" Isso insinua que ele tem uma história, precisa contá-la, e ela ficará guardada muito tempo. É possível, então, embora não seja minha teoria preferida, que o Sem-Nome 2 tenha escrito sua própria história, e a deixado para o sobrinho cineasta encontras nas suas investigações.
[3]: Gaudério: Gaúcho de nascença, criado em galpão, o mais guapo da estância. Vem do castelhano, termo para homem sem rei e nem lei, pejorativo para ladrão de gado, andarilho, vagabundo. Pessoa que não tem ocupação séria e vive à custa dos outros, andando de casa em casa. Parasita, amigo de viver à custa alheia. Denominação dada ao antigo gaúcho, em sentido depreciativo. Vernáculo com origens no latim, gaudium, significando um sujeito alegre. É usado comumente para designar pessoas que gostam de divertir-se, irem a festas gauchescas e encararem suas vidas com tranquilidade e otimismo. Há até o verbo "gauderiar", que significa andar à toa, vagar. Fonte:
aqui.
[4]: A famosa trilogia de
westerns do diretor Sergio Leone ('Por um punhado de dólares', 'Por uns dólares a mais' e 'Três homens em conflito'), têm como protagonista um cowboy andarilho, valente, solitário, meio vagabundo, bom de briga, que fala pouco, que ajuda os outros, que se envolve em duelos de vida ou morte, ou seja, alguém com as mesmas características do protagonista e de seu avô. Em 'Era uma vez no Oeste' Leone retratou outro protagonista sem nome, com as mesmas características e mais uma, a de tocar um instrumento (como o avô misterioso do protagonista). O arquétipo do aventureiro sem nome, solitário, caladão, um tanto cínico e de bom coração fez carreira nos
westerns, depois disso: 'Meu nome é ninguém', 'O estranho sem nome', 'O cavaleiro solitário' (nestes dois últimos o protagonista sem nome é além do mais um tanto sobrenatural, como no BES), 'El Mariachi'. Leone se inspirou no filme japonês 'Yojimbo', onde Toshiro Mifune fazia o protagonista, um ronin sem nome. Fonte:
aqui.
[5]: Não é bem assim, na verdade. Ulisses, numa das suas artimanhas para escapar dos perigos, diz ao ciclope que seu nome é "Ninguém", o que acaba por salvar-lhe a vida e permite a única cena engraçada da Odisseia (não posso contar porque é engraçada; sou a favor de
spoilers, mas não de contar o final das piadas).
[6]: A importância e o poder mágico do nome são destacados em muitas mitologias, incluindo a hebraica, a japonesa, a chinesa, a indiana, a egípcia, a maometana. Quase todas as religiões (especialmente o judaísmo, o budismo e o islamismo) dão especial importância ao poder do conhecimento do nome ou nomes de Deus, como fontes de poder elevadíssimo, ou supremo. As mitologias também enfatizam o poder mágico do nome das pessoas e coisas: nomear um ser equivale a adquirir poder sobre ele. Quando Adão recebeu o poder de dar nome aos animais recebeu com isso e por isso o poder sobre eles. No pensamento tradicional chinês o nome e a coisa são um só, o nome não só indica, mas constitui o ser, e a ordem do mundo depende da correta denominação das coisas. A mitologia egípcia crê no poder criador e coercitivo do nome, o nome é coisa viva, conhecer o nome proporciona poder sobre a pessoa
[37]. Cabe lembrar dos vários personagens bíblicos que mudam de nome para mudar de vida, como Simão-Pedro, Saulo-Paulo, Jacó-Israel. Do ponto de vista da superstição, dizer o seu nome verdadeiro ao inimigo é ficar sob o jugo dele. Do ponto de vista epistemológico, poder nominar algo é condição para conhecê-lo: não vivemos nem pensamos fora da linguagem, e conhecer algo é situá-lo no território da linguagem, marcá-lo, rotulá-lo. Com um nome.
[7]: Carrero, 2015. Também Prose (2008) anota que a questão de como chamar seus personagens é uma escolha importante que um escritor de ficção precisa fazer: tem de escolher um na miríade de termos ou designações que poderiam ter estabelecido diferentes graus de distância psíquica e simpatia entre o leitor e o personagem.
[8]: São Joaquim de Garopaba era o nome primitivo da cidade, v. cap. 8.
[9]: Sei que Hélio é nome comum entre gaúchos velhos, especialmente se descendem de alemães, como os personagens de BES. Mas o papel do escritor é enterrar pistas para o leitor desencavar, e o papel do leitor é tentar ler nas entrelinhas e enxergar abaixo da superfície do livro. Antes de ser alemão ou gaúcho, hélio já era grego e multimilenar. A precedência é do mito, não da história.
[10]: Fontes:
aqui e
aqui. Interessante notar, acerca da aproximação/oposição entre Viviane e a Dama do Lago, que no cap. 5 o protagonista tem um encontro com a Fata Morgana (explicada no cap. 8). Morgana, no ciclo arturiano, é sobrinha da Dama do Lago e irmã e Artur.
[11]: Há um aspecto a mais no nome Viviana, "viva", que se ilustra a partir do cap. 13 especialmente, mas transparece em todo o livro. Ela é a mulher que estará eternamente "viva" na memória dele, porque, sendo a inesquecível, o verdadeiro amor, é a amada imortal, ou seja, a "sempre viva". Isso é coerente com a trajetória amorosa do protagonista, que parece perseguido por mulheres com nome de flor (Dália, Jasmim, a derradeira cujo nome verdadeiro não sabemos, mas que tem uma rosa tatuada no corpo (cap. 7)). A essas se soma a "sempre viva", que também é nome de flor, aliás, flor "quase extinta e muito cara", que "recebeu este nome pelo fato de, mesmo depois de ser colhida, permanece viva por 60 anos ou mais" (fonte
aqui). Ou seja, é uma flor caríssima, como Viviane é caríssima (no sentido de muito especial), para o protagonista. E uma flor que continua viva depois de morta (uma vez colhida, decepada do caule, a planta está biologicamente morta), como Viviane continua na memória e no coração do protagonista apesar de não haver esperança de reatarem.
[12]: Há mais duas personagens que mereceriam, talvez, o qualificativo de "sem nome". Viviane tem duas possíveis etimologias, uma lembrada na nota 13; a outra vem de um erro na grafia do nome galês Ninian, feminino de Nynniaw, que ninguém sabe o que significa (fonte
aqui). Ou seja, alguém cujo nome verdadeiro (o significado por trás do nome) não se sabe, o que equivale a sem nome. A outra é a prostituta que será depois esposa e mãe dos filhos do triatleta. Ela se apresenta por dois nomes, mas é bem provável que sejam ambos falsos: ninguém espera que a prostituta diga seu nome verdadeiro ao cliente. Como lembrado antes, saber o nome é adquirir poder sobre. Dar o nome verdadeiro, no caso da prostituta, significa sair da personagem e franquear ao cliente acesso à pessoa real que o interpreta. Logo, impensável. Daí que não sabemos também o nome da moça com tatuagem de rosa.
[13]: "Os mitos e espaços poéticos nascem não só da realidade circundante, compartilhada por autor e leitores, mas também do diálogo com tudo o que, vindo de tempos anteriores, constitui a chamada tradição literária. É como se a literatura fosse um constante passar a limpo de textos anteriores, constituindo o conjunto de tudo – passado e presente – o grande texto único da literatura" (Lajolo, 1982). Só existe uma história para contar: a história do homem no mundo; nós no mundo, ou nós e o mundo, ou nós contra o mundo. O que Joyce chamava "o grave e constante no sofrimento humano" é o tema principal da mitologia clássica, e da literatura desde sempre. "A causa secreta de todo sofrimento (...) é a própria mortalidade, condição primordial da vida. Quando se trata de afirmar a vida, a mortalidade não pode ser negada" (Campbell, 1990). Freud (1930) indica as fontes principais da angústia do homem na cultura: as exigências imperativas do social, a degradação do corpo, a morte e os conflitos inerentes aos laços sociais (amor, relações familiares, de trabalho e de amizade). Sem dúvida, o amor, a religião e os ideais de revolução social para transformar o mundo fazem parte das grandes ilusões humanas: fraternidade, eternidade, felicidade e liberdade (Ferreira, 2004), e a única história que existe para contar é a história do homem perseguindo alguma dessas ilusões. Era o padrão que já aparecia nos poemas épicos de Homero trata das quatro grandes batalhas do ser humano: contra a natureza, contra os deuses (ou o destino), contra os outros humanos e contra si-mesmo. Esse padrão segue atual, a narrativa literária, ou cinematográfica, é normalmente a história de um homem e seu conflito, e este é um dentre quatro tipos básicos: o conflito físico (o protagonista enfrenta fisicamente o antagonista ou as forças da natureza); o conflito clássico (o protagonista encara as circunstâncias da sua vida ou luta contra seu “destino”); o conflito social (o protagonista luta contra ideias, costumes e valores do meio em que está inserido); e o conflito psicológico (o protagonista enfrenta suas próprias escolhas, idéias de certo e errado, suas limitações) (Jatobá, 2008).
[14]: Fonte
aqui.
[15]: Desmedida é uma ação equivocada da personagem, que provoca o início da peripécia. Geralmente é um ponto de virada na trama, porque dá início ao conflito. É um termo da poética clássica de Aristóteles, que descreveu o padrão da tragédia heroica como a sucessão dessas etapas: a
hybris (o orgulho cego) leva o herói a ultrapassar o
metron (a medida), ou seja, a fazer o que o homem comum não faria. Essa
desmedida o faz cair em desgraça e merecer o castigo (dos deuses, do destino, da sociedade, etc., conforme o pano de fundo da narrativa). O fim da história inclui normalmente um
acontecimento patético, isto é, um fato que provoca no espectador a comoção ou compaixão pelo herói caído. Esse acontecimento patético idealmente envolve, ou é precedido por, um
reconhecimento, isto é, uma tardia percepção, pelo herói, de qual foi o seu "erro".
[16]: "Ele era um violeiro e tanto", "tinha alma de artista", "devia ter percorrido o mundo tocando música e botando pra fora os sentimentos filosóficos dele"; cantando enlouquecia as mulheres, conforme a descrição dada pelo filho e pela esposa no cap. 1.
[17]: Cap. 9.
[18]:
Orfeu é chamado pescador, que pesca homens que vivem na água como peixes, trazendo-os para fora, para a luz. O pescador de homens. É um motivo mais antigo que a cristandade, a idéia da metamorfose do peixe em homem. Orfeu, assim, é uma das matrizes da figura crística (Campbell, 1990, p.226). Mais adiante falaremos dos aspectos crísticos em BES, mas cabe anotar desde já que o triatleta, depois de terminar sua jornada heroica, virou salva-vidas, isto é, um "pescador de homens", alguém que tira pessoas da morte (do risco iminente de afogamento) para a vida, que ressuscita (as manobras de primeiros socorros com respiração boca a boca que o salva vidas aplica aos afogados são chamadas popularmente de reanimação; reanimar é devolver a alma).
[19]: Noto, ademais, que Orfeu era semideus de uma religião agrícola, e seu mito é vinculado ao ciclo eternamente recomeçado de nascimento, crescimento, morte, um mito onde tudo é cíclico como a natureza (Jung, 2000). Em BES, o avô era lavrador, e em Garopaba foi se entocar num sítio, onde vivia numa chácara plantando horta (cap. 1). O Sem-Nome 2, embora não seja lavrador, é alguém que, segundo sua mãe, tinha "essa noção absurda de que vocês poderiam viver no meio do mato como se vivia mil anos atrás" (cap. 9), ou seja, alguém com nostalgia de um passado arcaico e agrário. O rito de Orfeu é cíclico (Jung, 2000), e este livro que narra um mito que também me parece cíclico, onde nascimento e morte se reiteram (conforme anotei acima. O rito de Orfeu é subterrâneo (Jung, 2000) e o avô acaba se tornando uma espécie de Hades-Plutão, um rei debaixo da terra, com direito a trono e rainha (cap. 11). Por fim, como mencionei na nota imediatamente anterior, Orfeu é umas matrizes do herói de modelo crístico, e o avô é desse modelo, como "veremos":#fcr.
[20]:
Easter egg (ovo de páscoa) é como se chama, na informática originalmente, uma informação oculta num programa ou numa mensagem, para ser encontrada pelo usuário/destinatário após certo esforço, como uma espécie de bônus. V.
aqui.
[21]: Exemplos de figuras crísticas na ficção escrita ou cinematogrática: Anakin Skywalker (nascimento misterioso, poderes "milagrosos", sinais desses poderes desde a infância, tentado pelo "lado escuro"); Neo do filme Matrix (The One, o escolhido, poderes mágicos, ressuscita gente, volta da morte, salva o mundo, se entrega em martírio), Harry Potter (marca de nascença em forma de raio indicando ser o escolhido para vencer o Inimigo), Luke Skywalker (escolhido para protagonizar uma revolução), a mulher do médico em 'Ensaio sobre a cegueira' (assinalada, é a única que vê num mundo de cegos; sacrifica-se pelos demais, lidera um bando de discípulos, reparte o pão), o rei Artur (o escolhido para defender sua terra, recebe um sinal divino, uma espada, que tem forma de cruz, senta-se à mesa com doze discípulos, é traído por um deles); o pescador de 'O velho e o mar' (sacrifício, três dias no deserto enfrentando tentações que não o afastam da missão, depois volta quando todos o criam morto, carrega um lenho pesado, tem um discípulo, pesca, ferido no flanco, cai feito morto com as mãos feridas (Foster, 2010)), o personagem de Marlon Brando em 'Sindicato de Ladrões' (luta contra os vendilhões, é hostilizado pela própria comunidade, sacrifica-se pelos semelhantes); Jean Valjean, de 'Os Miseráveis' (perseguido porque queria repartir o pão, flagelado, ajuda os outros, persiste na bondade), Teseu (porque penetra no labirinto sem volta, que representa o mundo do Além, e dali regressa, vencendo a morte, representada pelo Minotauro (Lurker, 1988), Sônia Marmeládova de 'Crime e Castigo', o príncipe Míchkin de 'O Idiota', Aliócha Karamázov em 'Os Irmãos Karamázov', de Dostoievski (Von Glehn, 2014); Bartleby o escrivão (Rancière, 1999).
[22]: Conforme Aristóteles. Na nossa cultura a iniciação se dá por transferência de emoções, através da literatura. O teatro nasceu no momento em que os ritos iniciáticos deixaram de ser espontâneos e passaram a ser encenados, apresentados a um público passivo, que se envolve na cena de outra forma: pelo envolvimento emocional (catarse), pela identificação profunda com o destino do herói (Feijó, 1984). E assim "...nos emocionamos ‘por procuração’. Sofremos com as desventuras das personagens, exultamos com sua felicidade. Não comprometemos nossos sentimentos ou vidas: penetramos numa espécie de análogo da relação amorosa. E, é bem verdade, se o fazemos é de alma limpa: vivemos com as nossas paixões as paixões de outrem, sem os compromissos e as exigências do ‘real’" (Colli, 1981, p.78).
[23]: Dabezies, 2005, p.522.
[24]: Foster, 2010.
[25]: Christopher Vogler, empregado dos estúdios Disney, escreveu no fim dos anos 1980 um memorando resumindo em 7 páginas a obra de Joseph Campbell 'O herói de mil faces'. Os 10 longas-metragens produzidos pela Disney entre 1989 (A Pequena Sereia) e 1998 (Mulan) seguem a fórmula proposta por Vogler com base nos estudos de Campbell (entre eles Aladdin, O rei leão, O Corcunda de Notre-Dame, A Bela e a Fera, Pocahontas) ([fonte](
http://pt.wikipedia.org/wiki/Memorando_de_Vogler)).
[26]: "Muitos autores escreveram inspirados pelo antigo mito da jornada ao inferno. Dante Alighieri (A Divina Comédia) foi um deles, precedido pelo personagem Enéias (da Eneida, de Virgílio) e Orfeu. Do ponto de vista simbólico mais aceito, “descer ao inferno” significa mergulhar no próprio inconsciente" (Pellegrini, 1995). "A
katábasis, do grego, 'ida para baixo', é o movimento dentro das narrativas mitológicas de descida às zonas ínferas, seu mais famoso exemplo é a descida de Orfeu em busca de sua amada Eurídice. A descida as zonas ínferas é uma epifania recorrente nas religiões originárias, seja na conquista de Nifelheim por Sigurd ou na conquista do Santo Graal por Percival. A
katábasis constitui-se no mito que analisamos pela invasão nos territórios do Minotauro. O Labirinto é o Outro Mundo, ou assim como chamam os galeses, o Annwn. O Monstro que o habita é o rei deste mundo, o Zeus Ínfero" (Silva).
[27]: Um "elixir doador de vida", um amuleto ou troféu (a juba do leão de Neméia, a cabeça da medusa, o velo de ouro, a pedra filosofal, a espada mágica, o graal, enfim). Esse objeto mágico é representativo da sua transformação, da sua nova condição enriquecida pela aventura. O motivo básico, ensina Campbell (1990), é o abandono de certa condição e o encontro de uma "fonte de vida" que conduz a outra condição, mais rica e madura.
[28]: Brandão, 1985.
[29]: Os heróis são sempre viajantes, quase nunca permanecem num mesmo lugar (Pellegrini, 1995). O tema da viagem é a descrição de um itinerário físico durante o qual o protagonista passa de um estado de ignorância a um estado de conhecimento, ou do pecado à salvação, do Erro inicial à Verdade final. Símbolo de transcendência ou libertação (Setaro, 2015). Do ponto de vista espiritual, uma jornada ou viagem nunca é apenas uma passagem através do espaço, um deslocar-se de um lugar para outro, simboliza a expressão de um urgente desejo de descoberta e de mudança (Pellegrini, 1995). Geralmente, mas não necessariamente, trata-se de uma jornada solitária ou peregrinação, onde o iniciado descobre a natureza da morte. Muitas vezes o herói é guiado por um mestre de iniciação, ou por uma figura feminina superior (
Anima) (Jung, 2000). Para fins simbólico-literários, ademais, a viagem não precisa ser literal: um trajeto curto, apenas uns poucos metros, podem representar a viagem para os fins metafóricos, desde que o herói o percorra para buscar um objetivo, sofra no percurso, e ao final sofra uma transformação (percorrer um labirinto, por exemplo, real ou metafórico, é uma viagem, para fins simbólicos). A Odisseia é o padrão histórico da viagem do herói. Uma lista de livros ou filmes onde a viagem é componente fundamental seria imensa. O IMDB, por exemplo, lista 628 filmes na categoria
road movie (
aqui).
[30]: O cowboy casar com a prostituta, no final, é tema recorrente nos
westerns: 'Rio Bravo' ('Rio Bravo', 1959), 'Era uma vez no oeste' ('C'era una volta il West', 1968), 'Johny Guitar' ('Johny Guitar', 1954), 'O Rio das Almas Perdidas' ('River of No Return', 1954), 'No tempo das diligências' ('Stagecoach', 1939), 'Django' ('Django', 1966).
[31]: Todas citações de 'Grande Sertão: veredas', respectivamente págs. 68, 8, 18, 356, 538, 497, 267, 8, 289.
[32]: Completa o seu processo de individuação, que, para Jung, significa tornar-se um ser único, tornar-se si mesmo, tornar-se um consigo mesmo; um processo de diferenciação que implica despojar o si-mesmo dos invólucros falsos da persona, assim como do poder sugestivo dos arquétipos, livrando o indivíduo da subordinação a modos de ser e fazer impostos pelo coletivo (Argollo, 2008).
[33]: Penetrar nas entranha da terra (na caverna) equivale a um enterro simbólico, alegoria presente em muitos mitos e ritos iniciáticos. O enterro simbólico é simbolicamente semelhante à imersão batismal, serve para curar, fortificar, ou iniciar num mistério. A idéia é sempre a mesma: regenerar pelo contato com as forças da terra, morrer para uma forma de vida, para renascer em uma outra forma (Chevalier & Gheerbrant, 2008). Nosso herói passa pelo sepultamento simbólico, ao penetrar na caverna, e ali é iniciado no mistério da sua identidade, ao confrontar o espelho distorcido que o avô representa.
[34]: Ele poderia dizer, como Riobaldo, "sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo. Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa" (Rosa, 2008, p. 14).
[35]: Bowker, 1997.
[36]: Chevalier & Gheerbrant, 2008.
[37]: Chevalier & Gheerbrant, 2008; Cirlot, 1984.
[38]: Só para lembrar alguns personagens ausentes famosos: Gatsby (de 'O grande Gatsby'), Godot (de 'Esperando Godot'), Natalia (de 'O eterno marido' de Dostoievski), Tristão (do 'Memorial de Ayres' de Machado de Assis), Rosa (de 'O último tango em Paris', de Bertolucci), Kurtz (de 'Coração das trevas' de Joseph Conrad e também de 'Apocalypse Now' de F. F. Coppolla), Laura Palmer (do seriado cult 'Twin Peaks'), Diotima (no 'Banquete' de Platão), Tartufo (da peça homônima de Molière). O personagem ausente não precisa ficar invisível até o fim; para caracterizar-se como tal basta que esteja fora do palco por um tempo relevante, durante o qual a história versa sobre ele e cria o suspense e o interesse em torno dele.
[39]: Para quem quiser se aprofundar no tema, indico
este estudo.
[40]: Para quem estiver com mais pressa,
este estudo resume o conto, e o interpreta.
[41]: Prose, 2008.
[42]: As associações simbólicas mais óbvias são: a) pela sua capacidade de adaptação ao homem, costuma ser um símbolo da fidelidade no relacionamento; b) o cão é tradicionalmente associado à função de guia, porque conduz os deficientes visuais, de modo que parece provável a função da cadela como guia do protagonista, pela vida e pela morte. O pai, que não ia mais viver, não precisava mais daquela guia, podia passá-la ao filho. Mas no campo simbólico e arcaico a associação mais forte é a que identifica o cão a um psicopompo, isto é, ser que conduz a alma ao mundo dos mortos, companheiro da alma na travessia noturna ou subterrânea, o que o faz um símbolo ligado à morte, mas também à ressurreição (dois dos temas deste livro). Por isso na Rússia era costume levar um cão junto da cama do moribundo para que recebesse alimento de suas mãos, alimento esse que garantia que o cão servisse de guia da sua alma para o outro mundo. Hécate, a deusa do nascimento e que estava relacionada ainda à magia, a iniciação e a morte, recebia sacrifício de cães. Anúbis, que é um deus-guia para o mundo inferior, é representado como um cão selvagem. Interpretações extraídas de Chevalier & Gheerbrant (2008), Cirlot (1984) e Eliade (2007). Beta poderia ser analisada, então, como desempenhando simultaneamente a função de guia, guardiã, iniciadora e condutora do protagonista na travessia da sua “noite escura da alma”.
[42]: Vem ao caso este trecho de Demian, de Hermann Hesse: 'Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim, a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem, ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura padece, em cada qual é crucificado um Redentor'.