O personagem principal d’A Hora da Estrela não é a triste Macabéa. É Rodrigo S. M., um escritor que foi menino pobre no nordeste, hoje é rico e culto, sente-se desonesto e marginalizado em todas as classes sociais, tem nostalgia da pobreza, e principalmente preferiria não escrever. Escreve por obrigação, a procura de uma resposta que não encontra (“este livro é uma pergunta”, p.31). Mas qual é a pergunta mesmo?
É lugar-comum dizer que toda literatura é autobiográfica. Hesse escreveu a respeito:
“Em nosso mundo moderno há obras em que, por trás do véu do jogo das pessoas e caracteres, tentou-se apresentar uma pluralidade de almas, não de todo inconsciente para o autor. Quem queira comprovar isto deve decidir-se a considerar de uma vez as figuras de uma obra semelhante, não como seres individuais, mas como partes, como facetas, como aspectos diversos de uma suprema unidade (que para mim é a alma do poeta)” (O Lobo da Estepe, p.65).
Acho que só pode ser esse o caso dessa Macabéa, da sua colega Glória, do seu namorado Olímpico e do narrador-personagem Rodrigo S. M.. Cada um deles é uma parte da alma da autora. Por isso é que o autor não dedica a obra, é a autora que dedica o autor: a dedicatória, atribuída a Rodrigo, diz “dedico-me” (p.21). É Clarice que dedica sua criatura e porta-voz, Rodrigo, ao sangue, aos gnomos, aos grandes maestros-compositores, porque esse Rodrigo não agüenta ser apenas ele (p.21), sabe que não passa de um dos personagens, ainda que um dos mais importantes (p.27). Por isso é que quando vê a nordestina a se olhar no espelho é o rosto dele, cansado e barbudo, que aparece (p.37): porque ambos são um só. Como Rodrigo/Clarice confessa a certa altura: “apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei de me escrever todo através dela por entre espantos meus” (p.39). Macabéa é (parte de) Rodrigo, assim como Rodrigo é (parte de) Clarice.
Ao criar um personagem homem para ser o seu narrador, Clarice não espera enganar o leitor. Não quer que ninguém pense que foi Rodrigo, e não Clarice, quem escreveu. Cria o narrador homem porque se sente frágil para denunciar com frieza dolorosa e sem piedade a existência de Macabéa. A mulher que há nela não seria capaz de fazer isso sem “lacrimejar piegas” (p.28). Por isso é que delega a narração à sua alma masculina, deixando falar só os atributos duros, frios, menos sensíveis, rigorosos do seu eu, ou, para usar uma expressão trivial, sua “porção-homem”. Rodrigo é a metade áspera de Clarice, a quem ela delegou a missão de denunciar Macabéa com secura e dureza, sem melosidade, agüentando a dor com uma dignidade de barão (p.31), sendo capaz de escolher para Macabéa o pior: a vida, que é soco no estômago (p.102). É como se Clarice se confessasse incapaz de mergulhar pessoalmente na miséria de Macabéa. Precisa inventar um personagem forte e insensível para fazê-lo em seu lugar. O autor tem direito de ser frio, mas não o leitor (p.27). É que Rodrigo é confessadamente só um personagem, não é real. O leitor, que se quer gente e de verdade, esse, como Clarice, não pode permanecer insensível diante de Macabéa.
Rodrigo, esse alter-ego culto, racional, intelectualizado, observa do alto a porção-Macabéa, da autora e de todos nós, a parte mirrada, falhada, inepta, de todo mundo. Tem pena e raiva da personagem. Descreve-a como um rosto que pede tapa (p.39), um cabelo na sopa, que não dá vontade de comer (p.78). Macabéa mal tem corpo para vender, ninguém a quer, é virgem e inócua e não faz falta a ninguém (p.27-28). Ela nem se conhece (p.29), nunca se viu nua porque tem vergonha (p.37), é tão tola que sorri para os outros na rua, embora ninguém olhe para ela (p.30), que é desinteressante como café frio (f.42). Uma cadela vadia teleguiada (p.32), que nem pobreza enfeitada tem (p.35), que vive num limbo impessoal, nem o pior, nem o melhor, apenas respirando, num viver ralo (p.38), sem nem saber que é infeliz (p.41), vivendo em tanta mesmice que de noite não se lembra do que aconteceu de manhã (p.49). Nunca recebeu uma carta na vida, nem telefonema (p.63). Incompetente para a vida, sem jeito para se ajeitar (p.39), jovem e já com ferrugem (p.40), tem olhos de quem pergunta, de quem tem asa ferida (p.41), ar de quem se desculpa por ocupar espaço (p.42). Não acha que é muito gente, ou é mas não se habituou (p.64). Não vomitava para não desperdiçar comida. Nasceu com maus antecedentes (p.42), teve infância sem bola nem boneca (p.48), beijava as paredes por não ter a quem beijar (p.97), até um ano de idade nem tinha nome, depois ganhou um que parece doença de pele (p.59); é encardida e tem cheiro murrinhento, porque raramente se lava (p.42), tem aparência assexuada e ovários murchos (p.51), um corpo cariado (p.51) e nem parece ter vocação para ser mulher (p.43). Defende-se “da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar” (p.48).
Rodrigo/Clarice denuncia a passividade, a falta de fibra, de Macabéa, que nem percebe que é infeliz, que não perde a fé, embora sem saber em que é que tem fé, que nunca reclama. Essa doçura e obediência incomoda, causa cólera de derrubar copos e quebrar vidraças (p.41), mas Macabéa insiste: “já que sou, o jeito é ser” (p.49). “Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era” (p.43). Achava que tudo que é bom deve ser proibido (p.50). “É assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há anos esperando” (p.42). Foi preciso que uma cartomante lhe informasse o que nunca percebera: que era infeliz, que sua vida era miserável (p.97), que sua tia-madrasta, que nunca se casou porque tinha nojo, mas sentia prazer sensual em bater (p.43), tinha sido má.
O adjetivo que o narrador emprega com mais freqüência, para descrever o universo de Macabéa, é ralo. Na vida de Macabéa tudo é ralo. Alma rala, vida rala, travesseiro ralo, ralas lições de datilografia, namoro ralo. Ralo, ensina Houaiss, é o que existe em pouca quantidade e de forma esparsa; sem volume; fino, escasso; sem consistência cremosa; em que há baixa concentração de seu elemento básico; fraco. Por isso que uma das fantasias prazerosas de Macabéa é a de comer a colheradas o espesso creme feito para embelezar a pele de mulheres que simplesmente não eram ela (p.54), mulheres de vida abundante, alma forte, travesseiro espesso, que tiveram lições substanciosas da vida e alcançaram um namoro com alta concentração de seu elemento básico, que Macabéa não conheceu.
As alegrias de Macabéa são parcas, e pobres como ela. Ouvir cantar o galo. Pintar as unhas de vermelho berrante para roê-las até o sabugo. Colecionar anúncios. Até seus objetivos mais delirantes são ínfimos. Deseja rever os fogos de artifício, comer queijo com goiabada, ter um poço só para ela. Idealizava ser gorda. Gostava de ouvir os pingos de minutos do tempo. Era capaz de deslumbrar-se só de ver o arco-íris, teve um êxtase ao ver uma árvore muito grande. Teve medo e não entendeu os bichos do zoológico: porque viviam? Mijou-se ao ver o rinoceronte. Em seus sonhos apareciam gigantescos animais antediluvianos. Não tinha apetite, apenas a grande fome (p.55).
Ao longo da monotonia de sua vida vazia, e dos maus-tratos sofridos, Macabéa chega a ter momentos de tímida reação. Ao ver sobre a mesa do chefe o livro “Humilhados e ofendidos”, é tomada por uma estranha sensação. E resolve faltar ao serviço, para deliciar-se com a solidão preciosa: um quarto só para ela, onde dançou porque se sentiu livre pela primeira vez. E quando o namorado Olímpico a trocou por Glória, Macabéa deu uma festa para si mesma comprando batom vermelho, e borrando grotescamente os lábios; depois roubou um biscoito da amiga que lhe roubara o namorado, e sentiu-se perdoada de tudo.
E o autor imaginário tenta se iludir, cogita de Macabéa se casar de branco (p.35), mas desde o princípio autor e leitor sabem que isso não ocorrerá, não há grito que salve Macabéa, o fracasso de Macabéa é fato irremediável feito pedra (p.31), porque o caso é de “história lacrimogênica de cordel” que termina numa “saída discreta pela porta dos fundos”, já que o autor, com “uma sensação de perda”, escutando desde o frontispício o “lamento de um blue”, sabe que não pode fazer nada (p.23). O leitor, aliás, está avisado de que do conto pode escorrer sangue (p.26).
Quando a narrativa começa, Macabéa já é fracasso consumado. Rodrigo/Clarice já sabe tudo o que vai se seguir e só não começa pelo fim porque precisa registrar os antecedentes (p.26). Por isso, o “quanto ao futuro”, seguido de ponto final, que aparece na lista de títulos e na fala derradeira de Macabéa, não se refere ao futuro dela, dessa natimorta personagem. Se fosse do futuro dela que se fala, viriam as reticências (p.27). O futuro é o do leitor, é o futuro do que o leitor fará com a denúncia recebida. O narrador-personagem desafia o leitor a sentir-se na pele de Macabéa, acusa o leitor de saber do que se está falando, de se fingir de sonso, porque “quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe” (p.26). E quem assistiu a minúscula tragédia de Macabéa não pode escapar também da constatação de que “a dor de dentes que perpassa essa história deu uma fisgada funda em plena boca nossa” (p.25).
A moça nordestina é uma verdade da qual o autor preferia não saber (p.55). Rodrigo/Clarice sabe que mais cômodo seria cair no vazio pleno sem resultados, da meditação por ela mesma, sem palavras e sobre o nada, resignar-se num “oco de alma” que é tudo o que se pode ter (p.28), transformar a cabeça em objeto-coisa, que é mais fácil (p.32). O que atrapalha a vida é escrever (p.22), mas escrever é necessário, mesmo que seja “duro como quebrar rochas” (p.33). Há uma força maior, cogente como lei, que manda escrever (p.32). Escrever, para Rodrigo/Clarice, é pensar sobre, é passar do fato “sentir” para o ato “pensar” (p.25), é tentar entender a ilogicidade da existência (p.34), é partir do assombro da dúvida à procura de respostas: “enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”. Rodrigo/Clarice escreve porque é sua obrigação (p.27), “porque há o direito ao grito” (p.27), e depois que “numa rua do Rio de Janeiro” seu olhar pegou “no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina” (p.26), um olhar que acusa, ele/ela precisa gritar para não sufocar (p.31).
Não é um grito de socorro, não é de denúncia, não é um grito útil com alguma serventia. O olhar de Macabéa acusa, e o escritor escreve para se defender (p.31), para aliviar-se da culpa de nada ter feito de concreto por essa moça (p.38). O grito de Rodrigo/Clarice é puro e não pede esmola (p.27), não pede favor nem implora socorro (p.31). É só um grito de angústia, de culpa, de desespero, para desabafar o luto e a frustração, é um grito de horror à vida (p.49). É que é incômoda a dor que Macabéa provoca em quem pegou no ar de relance o seu sentimento de perdição (p.26), é dor levíssima mas constante, “coisa de dentina exposta” (p.39). A função do escritor é contagiar o leitor com sua dor. Uma dor que não ficou em 1977, ano da publicação do livro: Clarice avisa que o dia de hoje é eterno, que amanhã também é hoje (p.33), para lembrar que Macabéa continua presente neste mesmo dia em que um novo leitor recebe a denúncia da existência dela. Clarice-Rodrigo quer fazer o leitor gritar com ele, nem que seja por dentro, quer levar o leitor a se surpreender ao constatar que, como o escritor, tem um destino, e a fazer a pergunta tenebrosa: “sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?” (p.29). A história de Macabéa é contada “porque deve haver um réu” (p.55). Clarice-Rodrigo quer conduzir o leitor “à tolice de perguntar ‘quem sou eu?’”, pergunta que provoca a necessidade e faz de quem indaga incompleto (p.30). Escreve para fazer o leitor assumir que também ele tem “terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda” (p.46) onde vivem as Macabéas. Crê na possibilidade dessa epifania porque “(..) todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espírito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa que ouro – existe a quem falte o delicado essencial” (p.26), razão porque cada um é capaz de reconhecer em si mesmo a veracidade da história de Macabéa, embora inventada seja. Escreve para convencer o leitor a sair de si para ver como é o outro, por mais que isso seja assustador (p.46); escreve para avisar ao leitor da existência das Macabéas, que são milhares, porque essa denúncia é dever do escritor (p.27), que só pode mostrar Macabéa ao leitor, para que ele a reconheça na rua e possa cuidar dela (p.33).
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A vida de Macabéa tem só três sedes: a rua do acre para morar, a do lavradio para trabalhar, o cais do porto para espiar no domingo (p.46).
Acre, ensina Houaiss, é o que tem sabor amargo, ácido, azedo; de cheiro ativo, forte, penetrante; de som agudo, pungente; de rudeza desagradável; áspero, mordaz, ríspido; que provoca amargura; aflitivo, doloroso, tormentoso; azedo, amargo; enjoativo. Macabéa vive, literal e metaforicamente, na rua da amargura.
Lavradio é o ato de preparar o terreno para cultivá-lo, o ato de cultivar, o cultivo da terra. É também o conjunto dos lavradores. A rua do lavradio é o mundo do operário, do que trabalha para ganhar o pão com mortadela de cada dia, como Macabéa.
Já o cais do porto é onde Macabéa, no dia do descanso, vai para sonhar e sentir saudade do que não aconteceu: “o cais imundo dava-lhe saudade do futuro” (p.45). É lugar simbólico: é um ponto de partida para viagem oceânica. O oceano simboliza o inconsciente, o desconhecido. O mar também simboliza incerteza, dúvida, indecisão, e simboliza o coração humano, lugar das paixões (Chevalier, p.592-3); simboliza o caos primordial e a essência divina (Chevalier, p.650). Por isso é que o cais chegou ao coração da sua vida, na hora da morte (p.101): só morrendo ela conseguiu livrar-se das amarras e partir em viagem rumo a qualquer coisa.
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Os animais na vida de Macabéa são o galo e o rinoceronte. O galo cantava aos domingos e a enchia de alegria. O rinoceronte a deixou transida de susto.
O galo, que ela gosta de ouvir cantar, simboliza o sol, energia solar, bom augúrio, coragem, anunciador do sol, guardião da vida, sinal da inteligência e da vinda de um anjo, a vigilância (Chevalier, p.457-8). Essa ave da manhã é o símbolo da ressurreição (Cirlot, p.270). A alegria de Macabéa por ouvir o canto do galo evoca essas significações positivas, que destoam completamente da sua triste sina. Tanto é assim que Olímpico acha que esse canto do galo é mentira, invenção de Macabéa, e não crê que na rua da amargura exista galo cantor. Mas o galo é também, para o budismo tibetano, o símbolo de um dos três venenos no centro da roda da existência: o desejo, apego, cobiça, sede; simboliza também a cólera; e é tradicionalmente um psicopompo, um guia das almas no mundo dos mortos (Chevalier, p.457-8).
O rinoceronte, que impressiona tanto a pobre Macabéa a ponto de ela se mijar de susto, é uma “massa compacta, grossa, preta e roliça” (p.72). Jung ensinava que os animais representam os instintos, a natureza primitiva e instintiva do homem, os impulsos primitivos incontroláveis que podem emergir do inconsciente, a animalidade intrínseca na alma humana (Jung, O Homem e seus Símbolos, p.146, 174, 237, passim), a psique não-humana, o infra-humano instintivo, o lado psíquico inconsciente; a profundidade do estrato psíquico de onde provém o instinto representado guarda proporção com a primitividade do animal-símbolo (Cirlot, p.83). O rinoceronte que comove Macabéa a ponto de fazê-la perder o controle do esfíncter urinário é uma massa compacta, grossa, preta, o que aliado ao seu caráter de animal fortíssimo e indomesticável, dá noção da primitividade da emoção que desencadeia em Macabéa. E é negro: a cor do subterrâneo, que indica matéria prima bruta, o nível mais baixo e primordial da obra alquímica, uma força oculta e germinando no escuro (Cirlot, p.176). Mas esse rinoceronte está numa jaula, como os instintos primitivos de Macabéa, aprisionados pela sua ignorância.
O rinoceronte que espanta Macabéa é negro. Negro é a cor do tempo, por oposição ao branco que representa a intemporalidade (Cirlot p.178). Nos sonhos o galo simboliza o tempo (Chevalier, p.457-8). Os dois animais da vida de Macabéa têm relação com o tempo. A relação de Macabéa com o tempo é também significativa. Além do galo ser uma das suas fontes de contentamento, sua companhia mais constante é a Rádio Relógio. Macabéa gostava de ouvir “os pingos de minutos do tempo” (p.67), gostava “de sentir o tempo passar”, embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo (p.80). Não percebia que o tic-tac que a encantava marcava sua contagem regressiva, como Rodrigo/Clarice percebe: “devo caminhar passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o tempo” (p.30).
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Todas as vezes que Macabéa e Olímpico se encontram chove. Ela só sabe chover, como diz ele.
A chuva tem na mitologia ocidental um significado quase sempre benéfico: fertilização, purificação, descida de influências espirituais do céu (Cirlot, p.159), fecundação, revivificação (Chevalier, p.236). Mas no I-Ching, a chuva representa perigo, dificuldade, o escondido, o que varia entre reto e torto, a ansiedade, a aflição, o ladrão (Olímpico é ladrão), a escuridão, o abismal, o sangue, o vermelho e a dor de ouvido (Hermann Hess, I-ching, o livro das mutações). No caso de Macabéa e Olímpico, parece que a chuva representava esse segundo contexto, um mau agouro.
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Em 7 de maio, dia seguinte àquele em que cometeu sua primeira rebeldia, e descobriu o prazer da liberdade-solidão, Macabéa conheceu Olímpico na chuva. Data simbólica, que marca o dia em que oficialmente acabou a II Guerra Mundial. E como Rodrigo S. M. é melômano, 7 de maio é também data do aniversário de Johannes Brahms e Pyotr Ilyich Tchaikovsky. Também é o dia em que, em 1824, estreou a Nona Sinfonia de Beethoven.
É o 127º dia do ano, reunindo, assim, uma plêiade de significados numéricos auspiciosos. O um é princípio, fonte de tudo, o criador, o centro místico. O dois indica equilíbrio realizado, o dualismo, a dialética, o começo de todas as ambivalências e todos os desdobramentos, reciprocidade e oposição, contrariedade e complementaridade. O doze representa todo o universo e sua complexidade interna (o zodíaco, as divisões espaço-temporais, os quatro pontos cardeais multiplicados pelos três planos do mundo, os quatro elementos multiplicados pelos três estados, o quadrado multiplicado pelo triângulo, é o número da perfeição). O sete corresponde aos sete dias da semana, aos sete graus da perfeição, aos sete céus; simbolizava a vida eterna para os egípcios, era ligado a Apolo pelos gregos; a semana tem seis dias ativos e um de descanso, assim como as seis direções espaciais tem um ponto central imóvel: o sete é a totalidade do espaço e do tempo, e é também o número da renovação cíclica, por isso é a chave do Apocalipse.
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Os êxtases de Macabéa foram três: o rinoceronte, a árvore, Una Furtiva Lacrima.
O rinoceronte, já foi visto, representa o seu encontro com seus instintos animais avassaladores, violentos, profundos e reprimidos, que ela jamais manifestará.
A árvore (p.81) lembra a árvore da vida, presente na mitologia mesopotâmica, islâmica, hebraica, greco-romana (representada pelo caduceu), nórdica, maia e também cristã (a cruz é a árvore da vida estilizada (Cirlot, p.99)), budista, e em todas essas tradições representa, com pequenas variantes, a ligação entre os três planos: as raízes pertencem ao mundo inferior, subterrâneo, o tronco é o mundo terreno e o galhos alcançam o céu (Mallon, Os símbolos místicos, passim). A árvore tradicionalmente representa o axis mundi, o centro do mundo, e a possibilidade da elevação, a possibilidade de ascender do inferno ao céu. Mas é também um símbolo dúplice, porque frequentemente há a árvore da vida e a árvore da morte, sendo a cruz cristã o símbolo que melhor resume essa dúplice natureza da árvore (Chevalier, p.90). Sexualmente o símbolo da árvore é também ambivalente, sendo imagem do andrógino inicial, representando o processo de individuação no qual os contrários existentes dentro de nós se unem, segundo Jung (Chevalier, p.89). E ainda segundo Jung uma árvore antiga representa o crescimento e o desenvolvimento da vida psíquica, enquanto a vida instintiva é em geral representada por animais (Henderson, in Jung, O homem e seus símbolos, p.153).
Macabéa se deslumbra, portanto, diante da contemplação das suas duas naturezas: seus impulsos instintivos profundos a aterrorizam, e a possibilidade do crescimento psíquico em direção à sublimação a fascina.
Se o animal espantoso e a árvore grandiosa lhe tocaram fundo na alma, foi a música que por primeira vez deu-lhe o vislumbre do que poderia ser e não seria: “(…) chorava porque, através da música, adivinhava talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas e até com um certo luxo de alma” (p.68). Pela primeira vez chorou, e pela primeira vez tentou cantar.
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Os nomes dos personagens, na obra de uma artista como Clarice Lispector, provavelmente não são fortuitos nem vazios de significado.
Por razões óbvias Macabéa me pareceu feminino de macabeu. Houaiss explica: macabeu é indivíduo de uma família sacerdotal judia, originária do sumo sacerdote Matatias Macabeu, que se rebelou contra o helenismo (Olímpico, que maltrata Macabéa, tem nome grego) e o domínio sírio em 168 a.C.. A guerra dos macabeus foi malsucedida, e foram traídos por vários judeus: os vilões dos livros sagrados não são os sírios e gregos, mas principalmente os judeus traidores. Etimologicamente macabeu parece derivar do hebraico makabi ou makav, significando ‘malho, martelo’. Há quatro livros dos macabeus, mas dois deles são rejeitados por todos os cânones das escrituras cristãs. Fazendo uma associação muito livre e sem compromisso, essa Macabéa de Clarice é um martelo malhando a consciência do leitor. Por isso, há grande chance de metade do livro ser recusada pelo leitor, como metade dos livros dos macabeus o foi pela religião oficial. E paradoxalmente a nossa Macabéa não se rebela contra a dominação que a subjuga, ao contrário dos seus homônimos do passado. Mas é uma dominada, e devia se rebelar, por isso recebe esse nome, que parece convidar a uma batalha inglória e quixotesca contra os grilhões, a insignificância, o destino atroz. Sua guerra, tão fraca e incipiente, fracassa, como a dos macabeus. E fracassa porque também ela sofre a traição interna, das suas próprias limitações, dos seus medos e hábitos derrotistas.
O nome Olímpico é aposto ao par “romântico” de Macabéa para fins paradoxais, antitéticos. Olímpico, diz o Houaiss, é relativo a Olimpo, o monte que era, para a mitologia grega, a morada dos deuses. Também significa “de aspecto grandioso, majestoso, sublime”. Olímpico aparece na vida de Macabéa para ser uma sua sombra, um contraponto. Nordestino pobre e migrante como ela, é o oposto dela no caráter e, porque a obra de Clarice vincula destino a caráter, Olímpico está destinado a um futuro oposto ao de Macabéa: será deputado, rico, respeitado, vitorioso. É que ele “era uma vítima geral do mundo, como ela, mas tinha dentro de si a dura semente do mal”, gostava de se vingar, era o seu grande prazer e o que lhe dava força de vida. Gostava de ver sangue, era galo de briga, cabra sem vergonha, sonhava em ser toureiro e um dia matou um homem. Aprendeu as maneiras finas só para se aproveitar das pessoas e pegar mulher. Tinha inveja do açougueiro, ver a faca invadindo a carne lhe causava excitação. Crestado e duro feito pedra ao sol, Olímpico tinha a força que um segredo dá. Era um homem com a honra já lavada, porque matara e roubara. Achava-se um vencedor: comia pimenta malagueta sem água. Escondia até de si mesmo que era um coração solitário pulsando com dificuldade no espaço. Esculpia lindas imagens que não vendia, de cristo com anatomia completa, porque era homem que nem ele, ou porque se achava tão bom quanto cristo. Era, em comparação com Macabéa, um semideus, um digno habitante do Olimpo, de uma estirpe superior destinada a sobreviver e prevalecer. Olímpico é cruel, calculista, amoral, mas apesar disso, ou por causa disso, é forte, ao contrário da doce, casta, meiga Macabéa. O contraste que Clarice expõe entre Macabéa e Olímpico parece dizer que cada um tem os defeitos das suas qualidades, e para ser forte é preciso ser mau, porque quem é bondoso é frágil e perece.
Glória, segundo Houaiss, é: fama que uma pessoa obtém por feitos heróicos, grandes obras ou por suas extraordinárias qualidades; pessoa ou obra famosa; motivo de orgulho, de exaltação; grandeza, honra, orgulho; grande beleza; esplendor, fausto, magnificência; grande mérito, valor; beatitude celeste; o Céu. Assim, Glória é também a sombra de Macabéa, seu oposto, o outro pólo da feminilidade, o sucesso em figura de mulher. Tinha mãe, pai e comida quente na hora certa. Era um estardalhaço de existir, porque era gorda (como Macabéa achava que tinha de ser para ser bela). Não se lavava muito, nem se depilava, mas tinha perfume de sândalo. Oxigenada, como Marilyn, que Macabéa gostaria de ser. Toda contente consigo mesma, dava-se grande valor. Tinha um traseiro alegre, era muito satisfatona, tinha tudo o que seu pouco anseio lhe dava. Ninguém mandava nela. Morava em rua de general e sentia-se garantida. Gastava tudo em comida. Por isso é ela que pode ter um destino Olímpico, ela é tudo que Macabéa não é.
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Três homens, três mulheres, três pares, duas tríades.
Macabéa é antítese e sombra da gloriosa Glória. Como Olímpico, cínico e cruel, é contraponto de Raimundo (cujo nome significa sábio poderoso, protetor, mãos protetoras). E, com efeito, este é quem se apieda de Macabéa, adia e não realiza a prometida demissão, apesar da incompetência da datilógrafa, e a dispensa do trabalho por duas vezes para tratar dos dentes. É o único homem bondoso que cruza o caminho de Macabéa. Quando Olímpico encontra sua metade, que só pode ser a bem nutrida Glória, a Macabéa resta o amor secreto pelo chefe.
Há o médico, que é par da cartomante. Ambos são medíocres, e se prostituem, de certa forma. Ambos são charlatães. Só que um trata enganosamente do corpo, e a outra tapeia nas questões da alma. Ambos exploram Macabéa enganando-a para tomar-lhe o pouco dinheiro.
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“Não hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um” (p.44). Pois não foi que somente na hora da sua morte é que Macabéa foi percebida pela pessoas que antes não a viam na rua? Aquele foi mesmo sua hora de estrela, porque nunca antes recebeu tanta atenção.
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Rua do Acre. Acre é amargo. Mas até lá, na rua da amargura, a vida brotava do chão, alegre por entre as pedras (p.46).
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A Hora da Estrela é, entre outras coisas, um discurso sobre a literatura e o ofício do escritor. Talvez seja, aliás, principalmente isso. Talvez a epopéia mínima de Macabéa seja um pretexto para dissertar sobre o papel do escritor. Ali se aprende que “quando as palavras se agrupam em frases delas se evola um sentido secreto que ultrapassa as palavras e frases” (p.29), e o escrito se transforma numa névoa úmida (p.30). Ao escritor cabe tornar nítido o que está apagado e quase invisível (p.33). Escreve-se é com o corpo (p.30), é um trabalho manual (p.34), são os dedos que apalpam o invisível enterrado na lama (p.33), parece carpintaria (p.28), é como quebrar rochas (p.33), é banhar-se no não e abandonar sentimentos antigos já confortáveis (p.34), porque a simplicidade só aparece a custa de muito trabalho (p.25): escrever não é acumular e sim desnudar (p.101). É ao escrever que se entra em contato com as próprias forças internas, e encontra-se, através de si, o deus (p.52). Escrever é afastar-se da ordem e cair no abismo povoado de gritos, o inferno da liberdade (p.53). O escritor sente a dor do personagem: “queiram os deuses que eu nunca descreva o lázaro porque senão eu me cobriria de lepra” (p.55). As informações sobre os personagens são poucas e obscuras, o resto vêm penosamente do próprio escritor (p.28), que tem de transfigurar-se em outrem e materializar-se em objeto (p.35): o livro é seu coágulo (p.26), é seu silêncio (p.31). “O que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim” (p.35).
Mas “mais vale um cachorro vivo” (p.51) do que o trabalho do escritor. É que a vida mais verdadeira é tão interior que não há uma palavra capaz de significá-la (p.25). O escritor quer é traduzir “(…) a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam” (p.105), o que é impraticável. Escreve sobre os fatos para desvelar um significado escondido nas entrelinhas: “os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona” (p.39).
Escreve-se para ser mais do que se é, porque se é tão pouco (p.35). Escreve-se para se livrar de ser apenas um acaso (p.52). Escreve-se porque é insuportável a rotina de se ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, morrer-se-ia simbolicamente todos os dias (p.35-36). Será que não é pelo motivo que se lê?